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A lembrança é uma coisa boa

por Léo Coutinho

A lembrança é sempre uma coisa boa, tanto no sentido de ser agradável quanto no de ser útil. Digo, uma má lembrança é positiva enquanto nos ensina o que não quereremos. Mas aqui vou falar das agradáveis, como só as memórias de infância podem ser.

Desconhecido (2011), de Theo Craveiro.

Dizem que a imaginação é na verdade a interpretação da memória. Por isso, Napoleão falou que é mais criativo quem sabe mais. E também é por isso que ninguém supera as crianças: absolutamente tudo para elas pode ser realidade. Só depois, com os filtros, é que vamos distinguindo o joio do trigo. Mas, se faz parte da infância, o joio agrada o homem.

Entre outras do século XX, a minha geração aprendeu amar e sonhar com algo que não faz sentido: motores a explosão e tudo o que os envolve, desde o cheiro até os sons, passando pela forma. Crianças urbanas, como eu fui, até na praia ou no campo desejavam os motores acima de tudo. É compreensível, dada a sedução das máquinas, a sugestão de autonomia. Mas, a rigor, tudo isso só serviu para criar dependência, e tão bruta que hoje sequer nos imaginamos livres dos carros.

Pior: a memória é tão boa que até no que tem de nojento pode confortar. Cheiro de óleo queimado, daquele vagabundo, de motor de dois tempos, das motos e das lanchas, é algo que me atrai. Misturado à gasolina, traz boas recordações, porque se dilui no meu tempo de criança, quando tudo era possível e real na minha imaginação.

Lembro-me de uma menina, a Gabriela Travaglini, filha de piloto de corrida, que, de tão aficionada, divertia-se até com WD-40, o spray anticorrosivo. Na volta dos passeios, a gente tinha de lavar as bicicletas para tirar o sal e a areia e depois bater o WD para proteger, e ela lá, divertindo-se com o aroma.

Dizem que, nas cidades mais evoluídas da Europa, estão conseguindo reverter os danos. Calçadas boas, transporte público eficiente e confortável, e as magrelas tomando o espaço dos carros no espírito das pessoas. Não sou mais criança, mas, ainda assim, esta doce realidade no meu sonho é absolutamente real.

Há alguns anos me tornei pedestre. Foi compulsório, não de propósito, mas o que de pronto me pesou como um fardo hoje considero tamanho privilégio que quase sinto pudor em publicar. E se aconteceu comigo, pode ser com todo mundo.

A minha cidade não ajuda muito. Em São Paulo, as calçadas estão péssimas, os ônibus agressivos, o metrô atrasado, e os taxis vão rareando. Bicicleta nem pensar, apesar da boa vontade daquele banco. E, mesmo assim, a minha vida melhorou muito, inclusive na busca do tempo perdido. 

Comecei a andar a pé e venho descobrindo as singelezas da vida que a infância automotiva me subtraiu. Há, em São Paulo, uma fauna e principalmente uma flora urbana surpreendentes, e a tendência é de melhora. Há a possibilidade de eu estar encantado como acontece com qualquer novidade, mas já são alguns anos de pedestrianismo e a sensação só aumenta.

Apesar da vida estar mais agressiva, de modo geral há um renascimento da simpatia. Os clássicos das casas amigas, que foram mortos pelas grades e muros, ou perderam relevância para os que ficaram dentro dos carros, como as flores na janela, as cadeiras no alpendre e os capachos desejando boas vindas, aos poucos estão voltando. As orquídeas, tão raras recentemente, já convivem tranquilamente no passeio público. A grosseria e a paranoia do arame farpado, das pontas de lança e cercas elétricas ainda predominam, mas acredito que chegaram ao auge e, de onde estão, só podem diminuir, minguar, morrer e deixar renascer uma cidade bonita e gostosa.

A esperança é onde o sonho encontra a realidade. Mas é algo sutil, que requer atenção para ser identificada. Por isso, para encontrar esperança, convém andar a pé e atento. Garanto: está por aí, basta querer encontrar.