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O exílio é uma insônia constante

Após séculos de guerras, revoluções e disputas territoriais, que culminaram em nada menos do que no terror da 2a Guerra Mundial, a Europa parecia ter finalmente encontrado um caminho para o continente. Mesmo os desafios pontuais, representados tanto pela polarização da Guerra Fria quanto pela ascensão constante de grupos nacionais separatistas, não desmobilizaram a convicção em um projeto chamado União Europeia. 

Diante de um período de bonança econômica, paz política e bem-estar social, a Europa começava a desconhecer a possibilidade de mudanças profundas na sua estrutura, quando o século XXI bateu à porta. Nele, o desafio inédito de lidar com o fluxo migratório de milhões de pessoas, oriundas em sua maioria da África e do Oriente Médio, em busca de melhores condições de vida. 

Nesse contexto, Passport, do fotógrafo François-Marie Banier, é uma experiência de dar voz a essas pessoas, que são facilmente transformadas em números quando desembarcam nas fronteiras da Grécia e da Itália.

Conhecido no mundo cultural francês como escritor, ator e dramaturgo, Banier retrata os imigrantes nas ruas de Paris, de forma a evocar uma atualização visual e contemporânea de Os Miseráveis (1862), o romance clássico do seu compatriota Victor Hugo.

Concebido de forma a simular um passaporte, o livro se propõe justamente a denunciar o apagamento da individualidade daqueles que deixaram para trás suas identidades para recomeçar. A abertura, extraída da peça de Sófocles, Édipo em Colono, introduz a condição do estrangeiro, dando o tom para os versos livres de Atiq Rahimi. Escritor e cineasta afegão, Rahimi ilustra as fotografias reproduzindo a sua experiência como imigrante, após fugir de Cabul durante a guerra, nos anos 80.

Passport, de François-Marie Banier (Steidl)

Medo, preconceito, incertezas, peregrinação e busca por dignidade são alguns dos temas entregues ao caráter lírico de Rahimi. Se a experiência pessoal do afegão busca reconstituir o desejo e os sentimentos dos refugiados em território europeu, a nota final revela, por sua vez, o caráter contraditório da condição da própria Europa.

Assinada por Banier, o trecho final relembra o momento em que François se questiona sobre quem seriam esses homens, que, da noite para o dia, começaram a surgir nas ruas de Paris, ora na Place de la République, ora em frente à estação Gare de l’Est, e por vezes nas margens do Canal St. Martin. Quem são eles que ousam modificam o cenário desta França? Espelho de um continente fragmentado, em que franceses têm avós do norte da África; italianos, raízes austríacas; e alemães são filhos de turcos e húngaros, o espanto do autor está no próprio ato de ainda espantar-se com as próprias questões.

Esses homens somos nós. 


Passport
de François-Marie Banier

Steidl, 2020
72 páginas
www.steidl.de