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Machucado ou a necessidade do estrago

por Marina Lattuca

Quando tinha uns 7 anos tomei uma unhada da minha vó no lábio inferior. Ela quase chorou de dó e culpa. Eu fiquei meio assustada porque machucado causado por vó é praticamente um paradoxo. Vó normalmente cuida do machucado. Foi sem querer, eu sei. Depois, inclusive, achei o máximo. Aquele risco craquelado na boca me deixou com um ar de moleque, de vivida, de selvagem. E até hoje eu acho corte na boca bonito. Corte na sobrancelha também tem seu valor, mas na boca é outra coisa.

O mundo se divide entre as pessoas que idolatram os machucados e as que odeiam os queloides. Eu sempre tive um fraco pelos machucados. No meu corpo de menina, aquilo me dava um ar de corrompida. Desleixada. E eu queria aquilo pra mim.

O corpo apagado, dizem, é o que torna a mulher bonita. O corpo com as marcas apagadas, as gorduras desaparecidas, as rugas esmaecidas e as estrias cobertas. Mas quando criança era o contrário. Eu queria as marcas. Especificamente as marcas masculinas. Da violência, da guerra, da batalha e do conflito. Como se, testemunhando os perigos que enfrentei, elas servissem de alerta aos mal-intencionados que buscavam me amedrontar. No interior da Bahia, na praia, os moleques pulavam por cima desse corpo deitado de marca-menina. Como em equitação de primeira, eles montavam seus cavalos fálicos e corriam com raiva freando os pés só quando já estavam a um centímetro das nossas carnes. Depois continuavam com impulso tropeçando e rindo. A minha irmã me fitava com os olhos distraídos, como quem diz: “deixa pra lá, vai”. E eu levantava da minha condição de obstáculo-barreira e queria montar no cavalo. Gritava, com uma vergonha horrível de estar com os peitos cobertos apenas pelo biquíni ridículo. Xingava com palavras sujas e os meninos, que riam, montavam no cavalo pra recomeçar o circuito.