#40DemoliçãoArteArtes Visuais

Turvações estratigráficas e as cápsulas do tempo

O diário de notas da exposição Turvações Estratigráficas, ocorrida no Museu de Arte do Rio, em 2013, apresenta uma série de esboços, garatujas, ensaios e apontamentos. As remoções forçadas, as casas marcadas no Morro da Providência – com as iniciais da Secretaria Municipal de Habitação (SMH) – resistiam e colidiam com o material arqueológico que brotava da região portuária durante as obras do Porto Maravilha. O fervor presente da futura chegada das Olimpíadas e da Copa do Mundo, a especulação imobiliária e a revulsão da “Cidade Maravilhosa” eram algumas das complexidades que a exposição movimentou. Em um dos trechos do diário de notas se lê: 

“O exercício era supostamente simples: desmembrar as palavras, trair a língua, fazer delirar a linguagem. Numa deliberada não constatação etimológica, concordamos que topar e topografia têm a mesma raiz grega, topos.

O exercício seguinte: fechar os olhos, tatear a terra, escutar o lugar. A quina de algo maciço, objeto da primeira topada, emergia de um terreno arenoso, irregular, revolto.

O guia, uma espécie de Stalker, nos conduzia em meio aos escombros enquanto narrava a prosperidade por vir. Os shoppings, os hotéis, as lojas de luxo, os arranha-céus com seus vidros espelhados, em suma, as ruínas e a detonação de qualquer faculdade mimética: ruína-hotel cinco estrelas vista mar, ruína-shopping elevador panorâmico, ruína-CEPACs.

O dedo em carne viva, latejante e entranhado por terra, obrigou, de uma só vez, a pausa, a abertura dos olhos e a verificação do objeto da topada. Um pequeno baú de madeira, semiaberto e parcialmente enterrado. Com o auxílio de outro objeto, que só depois percebemos ser uma dormente das antigas estruturas que existiam na região portuária, desenterramos a caixa.

Um lenço, algumas moedas, um calendário, uma calça de algodão cru, um jornal envolto em um saco plástico, uma escova de dentes, um relógio de bolso, uma boneca de pano, um azulejo, uma caneca sem o cabo e uma pequena bolsa de couro que trazia, em seu interior, uma carta parcialmente indecifrável. A carta começava assim: ‘No interior desta caixa não se conserva o testemunho do tempo, não se conservam nem mesmo fragmentos da História. Abrir as caixas lançadas no espaço, abrir as materialidades encerradas em seu interior. Não se conserva, dinamita. Também sob os seus pés, no momento em que lê essas palavras, a inclemência dos tempos’.

A sirene tocou pela terceira e última vez. A terra tremeu.”