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Uma conversa com Nlaisa Luciano

Eu pude conhecer Nlaisa diversas vezes. Primeiro, conheci a Nlaisa educadora popular. Depois, ouvi falar da Nlaisa ativista. Posteriormente, passei a ver uma mulher de olhar marcante e doce, com quem cruzava caminhos pela Maré. Até que pude ouvir Nlaisa. Ouvir com os ouvidos e com os olhos também. Com o respeito e o carinho de quem tem muito a aprender com ela. Os padrões de gênero, associados às questões de raça e classe acabam por reforçar desigualdades e processos de exclusão. Pensar gênero a partir de vozes que rompem com os padrões hegemônicos é urgente. É caminhar no sentido da reflexão, da revolução e da igualdade. Com a palavra, Nlaisa Luciano:

Pâmela Carvalho – Nos conte sua história, caminhos que percorreu, desejos e formas de ver o mundo.

Nlaisa – Eu me tornei a pessoa que, na infância, era interrogada. E lembro de todas as interrogações que me cercavam. Lembro das minhas inquietações de não me sentir inteiramente. Lembro de todos os medos que senti. Estou no processo de travessia com o meu corpo, minha mente e meu espírito. Sou também negra, mulher e travesti, numa reinvenção para além do binário. Eu me amo hoje. E me amar foi um processo doloroso. Desabrochar foi difícil e ainda é. Desabrochar é um processo, e que bom que é! Cada traço do meu corpo é um contorno de memórias que disputam a vida quando a mim só querem a morte. Sou fronteira entre a margem e o centro. Sou muitas versões ao longo da minha trajetória-história e quero ser mais versões de mim. Me transformo apreciando a beleza que trago e, assim, me interpreto também. Meu corpo é um lugar de experiência. Me preencho pela necessidade do registro-escrita como forma de resistência. E, pensando nessa mulhernagem — já que de homenagem o mundo está cheio — escrevo um relato também. Estou construindo em meu corpo um lugar para remontar às experiências no útero que foram vividas mas não são lembradas. Lá, algo eu estava sendo, mesmo que não soubesse o que eu era. As paredes do útero protegem o crescimento ao mesmo tempo que limitam os movimentos. Dói formar seu próprio corpo, dói querer ir para fora. Como pensar a formação? No meu movimento não há restrição. Eu estou e sou meu próprio útero. Útero como espaço de escutar, sentir, olhar e pensar o que é corpo. Chamei a mim pelo nome Nlaisa, recorrendo, em sua construção, aos estudos, à memória afetiva, à inversão das normas da língua, à exclusividade de ser a única. E, carregando esse “N” mudo que também fala, tal como em Nzinga, Nkosi… Pulsando ancestralidade, chamego e dengo.

Qual é sua relação com o seu território? E como ele contribui em sua construção enquanto ser político e social?

Meu território é meu corpo que se entendeu nas entranhas da favela e gerou uma vida nos becos. Enxergo, no passado, a falta de informações que poderiam se manter no hoje através das vozes e arquivos documentais que registrassem a trajetória genealógica da minha vida. As travessas onde morei foram percursos, e as relações estabelecidas em vida trouxeram convivências cotidianas. Construir possibilidades coletivas e estratégias individuais de permanência não é fácil. Conforto e desconforto são confrontados por perguntas e respostas a partir de informações e desinformações expressas entre meu ser político e a política de ser favelada. A favela é parte do que sou. Quem eu sou parte também da favela como identidade, memória e resistência.

O que é gênero para você?

Não quero, em nenhum momento, determinar ou difundir uma ideia de que sou capaz de falar sobre gênero em sua totalidade e com propriedade. Por isso, deixarei evidente minha perspectiva a partir de acessos, estudos e vivências. Gênero é uma palavra ligada a origem. Podemos dizer que gênero é uma forma de dar sentido às diferenças percebidas socialmente e nessas diferenças, historicamente, se estabeleceram relações de poder que se perpetuam culturalmente nas sociedades. Percebemos, então, a existência de uma norma incidindo em nossos corpos, em nossa mente e na forma como enxergamos o mundo, e há pessoas que estão de acordo com essa norma. Para pensarmos o conceito de gênero, precisamos nos incomodar, nos despir e exercitar reflexões sobre como se instauram os aspectos socioculturais que legitimam, condicionam e invadem nossa maneira de significar as coisas. De significar o que é ser homem e mulher, por exemplo. De significar o que é cisgeneridade e transgeneridade. De significar o que é binário e não binário. De significar como a estrutura nos faz repetir e reproduzir as lógicas que foram construídas e impostas mas que podem ser modificadas, porque não há uma fixidez quando identificamos a pluralidade e diversidade de existências possíveis neste mundo.

Você acha que os papéis de gênero contribuem para a forma como a sociedade está estruturada? 

É perverso ver, frequentemente, chá revelação. É violento presenciar um ritual em que pessoas se encontram para “revelar” uma vida que será definida a partir do momento em que a genital será um marcador de uma pessoa que nem nasceu mas já foi anunciada e será selecionada, encaixada e atribuída a um mundo rosa ou azul. Mundo de possibilidades limitantes, pensamentos projetados, ideais arquitetados manipulando uma vida que nem tem consciência de que está sendo desenvolvida. A associação de cores girando em torno dessa vida reforça a existência de que papéis sociais de gêneros já são e estão diluídos na sociedade, e, em muitos momentos, desobedecer dói. Nesse exemplo, percebemos como a estrutura da branquitude binária, cisgênera e heteronormativa vai exercer um poder perverso e violento sobre todas as pessoas que serão categorizadas como anormais caso não se adequarem ou se encaixarem nesses padrões preestabelecidos, sendo vistas como pessoas que se desviam do “único caminho possível”, punidas com exclusão, criminalização, rejeição, violação e morte.

É possível pensar uma perspectiva de abolição ou demolição do gênero? 

Acredito que sim, mas antes precisamos nos incomodar também. Há muitas situações confortáveis. Há muitas situações que nos acomodam. Há muitas situações em que não queremos abrir mão de certo poder, de certo privilégio. Se gênero é uma construção, ela pode ser abolida e está sendo demolida, inclusive por muitas pessoas que estão confrontando diariamente o próprio gênero. Se há um desconforto e uma urgência de falar, pensar e refletir o que é gênero, precisamos, cada vez mais, agir! Construir estratégias coletivas de possibilidades outras. Há dificuldade em dizer que gravidez, útero e menstruação não são questões exclusivamente de mulheres, por exemplo, porque isso mexe numa delicada conjuntura cis-heteronormativa. É cansativo, doloroso e incomoda debater e experienciar narrativas que não estão em conformidade com a lógica que está estruturada. Viver, na pele, em muitos momentos, é se ver vulnerável. A linguagem, por exemplo, é um mecanismo que sustenta poderes, estigmas, categorias e rótulos. Devemos exercitar, diariamente, propostas que rompam com a norma e inaugurem movimentos e mecanismos que protejam e façam permanecer as novas existências.

Você acha que gênero, raça e classe se misturam quando falamos de sociedade e sistemas de opressão e privilégio?

Não há como ignorar ou desconsiderar que todos esses temas se atravessam e são interseccionais. Não acredito que existam possibilidades de debater gênero dissociadamente de raça e de classe, por exemplo. O cistema é tão bem amarrado e estruturado que é mais fácil cairmos em armadilhas do que achar brechas para modificá-lo. Por isso, é de extrema importância nossa consciência de que esses debates e essas lutas estão misturados e não isolados.

Quais caminhos você vê como possibilidades de avanço nas questões de gênero na sociedade brasileira?

Convido as pessoas leitoras a pensar sobre os desvios que podemos construir a partir de uma lógica que altera os caminhos já impostos. Há pessoas que entendem, a partir da sua vivência, lógicas depositadas sobre si, responsabilizadas ou culpabilizadas de efeitos que lhes afetam diretamente, quando estes são, em realidade, efeitos de mecanismos de poder e elementos de saberes que incidem direta e indiretamente sobre nossos corpos. E assim, entre camadas e camadas do que nos foi depositado, somos constituídes enquanto pessoas sujeitas — no sentido de se sujeitar. Se podemos pensar que o determinante do ser é a ação, o que constrói os sistemas são as relações concretas. Num regime de organização social capitalista em que a desigualdade é cada vez maior, desenvolver coletivamente as lutas é se envolver na prática com as ações de lutas. Precisamos, quando já informades, sermos fôrmas para que outras pessoas se informem e se formem numa formação da práxis. Não é só teoria. É teoria e prática. Não há possibilidades de discursos isolados só em tempos em que a exigência de posicionamento é pulsante. A nossa obrigação é também praticar o que falamos, ser capazes de agir e, agenciando, construir possibilidades estratégicas de mudanças efetivas. É interessante pensar conceitos e debatê-los em redes sociais, mas as pessoas na sua rua sabem o que é gênero? Sabem o que é classe social? Elas já se entenderam pretas, por exemplo? Quando e como você se entendeu nos seus processos? Sua identidade de hoje é tão óbvia para sua vizinhança? Estamos construindo novas lógicas transgressoras, mas não podemos esquecer que toda transgressão causada num regime já instaurado se torna conservadora em alguma medida. Não à toa, preferimos seguir reproduzindo opressões quando já alcançamos certa “liberdade da própria voz”. A tradição é quebrada e se torna uma nova tradição. Cuidado! Desenvolvam a formação. Não é só defender o que somos, mas também rejeitar o que querem impor aos nossos corpos. É identificar, nas normas, nossos desejos de repeti-las e desobedecê-las.