Quase sempre representada como uma pessoa derramando líquidos de um receptáculo para outro, a Temperança é uma pessoa/anjo, andrógina, com um pé na água e outro na terra. Uma mediadora alquimista entre mundos. Intuitiva e extremamente sensível, simboliza evolução, conforto, gentileza, proteção, paz, continuidade, conciliação e estabilidade, anunciando transformações radicais com um espírito pensativo e maduro.
Não sou real oficial uma esotérica, nem diretamente conectada a assuntos espirituais. Me considero muito mais uma pessoa sensitiva (ou a própria bruxa). Não exercito com frequência e dedicação práticas relacionadas a tarô, cartomancia, quiromancia, astrologia e afins. Mas acredito fortemente nas energias do mundo, nas energias dos astros, nas conexões emocionais, psicológicas e físicas.
Apesar de não ter uma prática relacionada ao tarô, sempre me encontrei bastante curiosa em relação aos seus mistérios e possibilidade de leituras. Imagino o tarô muito mais como um oráculo que pode nos dar uma literatura com relação a coordenadas subjetivas.
A carta Temperança – não lembro exatamente como essa imagem surgiu para mim. Não lembro quando e como me deparei com ela…
A Temperança representa uma figura híbrida, andrógina. Uma entidade com capacidade de articulações dos sentidos, dos temperamentos subjetivos, uma manipuladora dos ares, das águas e da terra. Identifico-me enormemente com a travesti Temperança. Anunciadora de mudanças radicais, portadora de energias transformadoras. Femme fatale, anja, flutuando pelos espaços, trazendo a promessa de uma novidade que vem para abalar o sistema.
Há mais ou menos dois anos, fiz uma releitura em desenho, uma versão minha da carta Temperança. Na ocasião, eu havia recentemente conhecido a pessoa que atualmente se tornou meu parceiro, meu amante, meu companheiro. Presenteei-lhe com essa releitura da Temperança em seu aniversário. Tanto para ele quanto para mim, o fato de estarmos nos encontrando e nos aproximando afetivamente era o símbolo de mudanças muito representativas e bombásticas. Para ele, eu era um novo universo inteiro a descobrir, a desconstrução de muitos padrões em relação a um relacionamento e em relação à sua história como homem, branco e europeu. Para mim, ele representava uma fissura dentro de um sistema excludente, a exceção a uma regra. A partir de então, eu, travesti imigrante latino-americana, passava a ter acesso a uma afetividade sempre negada às nossas corpas travestis.
Eu, particularmente, possuo um temperamento bastante volátil. Possuo um universo interior povoado de fantasias, alucinações, ansiedades sexuais e desejos diversos. Posso ficar temporadas inteiras hibernando em meus pensamentos, inerte. De um momento para outro, posso explodir meu mundo inteiro e causar uma revolução em nível cutâneo, sanguíneo e metafórico de meus arredores. Nestes últimos tempos de abalos econômicos, políticos e pandêmicos, tenho passado muuuuito tempo a sós. Já tive meu momento de deleite com o isolamento, já estive à beira de ataques de pânico, ansiedade e disforia solitária.
Eu sei que não sou a única travesti com tais dificuldades. Eu sei que muitas manas estão em posições menos privilegiadas do que a minha neste momento. Em nossas políticas interpessoais, estamos fazendo o que podemos para nos mantermos sãs, salvas, para conquistarmos mais e mais o espaço que é nosso de direito.
Ao invocar esta figura da Temperança, penso em acentuar um fenômeno sísmico, penso em anunciar a chegada de novas ondas. Penso em presentear a mim mesma, à comunidade trans e LGBTQIA+ e ao mundo com essas energias transformadoras, anunciando uma nova era de prosperidade travesti.