
O sumiço do encanto
No começo, o sumiço do encanto passou desapercebido. Não houve trovão nem tempestade, nem anúncio no noticiário ou no stories do Instagram. Apenas uma leve mudança no ar, um desbotamento, um brilho que se perdeu. As flores afloravam com as cores mudas, o vento soprava desanimado, sem levantar as folhas num turbilhão. Os adultos pareciam mais cansados, de passos arrastados pelo peso da responsabilidade. Todo lúdico foi se desvanecendo.
As crianças foram, é lógico, as primeiras a perceberem. O lápis de cor de repente se recusou a pintar o dragão de verde, o céu de azul, o unicórnio de cor-de-rosa. O lençol deixou de ser um paraquedas, o chapéu mágico já não produzia mais pombos ou coelhos. A fada do dente não veio. Espantados, perceberam que o encanto havia sumido.
Juntaram-se uma tarde e decidiram fazer algo a respeito. Mas onde encontrar o encanto?
— Já sei — disse um. — Minha avó sempre diz que o encanto mora dentro de nós.
— Mas como encontrá-lo? — indagou outro.
— Nas memórias, ora. Me lembro de uma tarde, deitado na grama, olhando o céu e imaginando que as nuvens eram todo tipo de bicho. Girafa, anta, macaco, papagaio.
Já outro respondeu:
— Nada disso. O encanto mora nos olhos. Meu pai diz que, se quisermos, podemos enxergar o encanto até nas coisas mais básicas do dia a dia.
— Teremos que juntar muitas memórias — disse uma menina —, e usar todos os nossos olhos para tentar enxergar o encanto.
As crianças olharam à sua volta, mas tudo parecia cinza, pálido. Até que a menina avistou uma singela borboleta.
— Ali! A borboleta!
As crianças olharam para a borboleta, que lutava para voar, suas asas penando. Começaram então a se lembrar da vez em que a borboleta pousou na cabeça da mamãe, de quando o titio comprou uma rede para caçar borboletas no Natal. Do campo de flores com centenas de borboletas, encontrado por acaso numa tarde no parque. Com a enxurrada de memórias, a borboleta começou a ganhar força e brilhar, cada vez mais colorida. As suas asas, antes cinzentas, se tornaram furta-cor. Cada criança enxergava uma cor diferente, ora roxo, ora verde, ora azul turquesa. Logo notaram que o silêncio do ar foi se transformando, ganhando som. Parecia até que a borboleta estava cantando.
— Claro — disse uma menina muito sabida. — A palavra “encanto” vem do latim incantare, ou cantar sobre. Antigamente, as pessoas cantavam palavras especiais, de poder, transformando o mundo à sua volta com a voz. E daí, aos poucos, “encanto” passou a descrever tudo que encantava, fascinava, provocava admiração. É a música que a alma reconhece, mesmo quando a razão a esquece. O encanto não é feitiço, é o canto que damos ao mundo quando acreditamos nele.
A música da borboleta pululava, espalhando-se pelo ar numa brisa colorida. Cada nota parecia despertar algo adormecido: as flores se esticaram, preguiçosas, as árvores voltaram a balançar e até o sol cintilou mais do que nunca.
As crianças se entreolharam, surpresas com o que tinham feito.
— Então é isso… O encanto nunca foi embora — murmurou um dos meninos. — A gente é que se esqueceu de cantar.
E começaram, todos juntos, a inventar uma canção. Não tinha rima nem melodia certa, mas era feita de risadas, lembranças queridas e pedacinhos de sonho. Cantaram para o vento, para o chão, para o céu, e, a cada verso, o mundo ia recuperando suas cores.
Quando o último acorde da canção se dissolveu no ar, a borboleta pousou no ombro da menina e sussurrou algo que ninguém mais ouviu. Ela sorriu e disse baixinho:
— O encanto nunca morre, ele apenas adormece dentro das pessoas que param de acreditar.
Depois disso, as crianças voltaram para casa, levando consigo pequenas sementinhas brilhantes. Eram sementes de encanto para cada uma plantar. Sementes que crescem quando são regadas com risadas, alimentadas com a imaginação, acolhidas pela gratidão de viver cada momento de nossas vidas. As sementes que crescem, invisíveis, com o doce canto dentro de cada um de nós.
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