Primeiro é o bicho-papão. Seus pais, querendo obrigá-lo a dormir, contam que debaixo da cama mora o tal monstro, que ataca no escuro, mas que você não corre risco se ficar comportado, quieto e se concentrar, ainda que não esteja com sono. Então, um belo dia, exausto de pavor ou com vontade de fazer xixi, você reage, controla o medo e bota o pé no chão. Sem levar a tal mordida, agacha, levanta a coberta e espia. Não ha bicho algum. Dali em diante, portanto, para fazer você dormir, seus pais abandonarão o chicote emocional e adotarão o torrão de açúcar, prometendo vantagens e facilidades se for obediente.
Na escola, é a vez do padre, do professor e do bedel. Unidos, dedicam-se antes a prevalecer sobre crianças do que a ensinar o beabá. Para eles, ser um bom aluno não significa aprender rápido, mas ser estudioso, disciplinado e obediente. Até que um dia você se cansa, deixa sua natureza curiosa, criativa e divertida fluir, e faz uma pergunta óbvia, porém tida como inconveniente, e, no lugar da resposta de quem deveria ensinar, recebe palmatória, advertência, suspensão ou coisa que o valha. Se mesmo assim não se emendar, a escola acenará com possibilidades de notas melhores e com a atenção especial do diretor. Os poucos que não se venderem acabarão expulsos.
Em família o processo é parecido. Se os avós e os tios não têm graça, compram a simpatia dos netos e sobrinhos com açúcar. Aos que não possuem sequer açúcar, resta impor a autoridade conferida pelos anos vividos. E para isso não precisam de motivo especial, basta a presença do pirralho. Um bocejo distraído pode ser entendido como falta de respeito. Quando você enfim percebe que o tempo ajuda, mas não determina o caráter nem a inteligência de quem quer que seja, resta a ameaça de que sem aquelas pessoas, que jamais escolheria como amigos, os Natais, que acontecem uma vez por ano, serão muito tristes para você e principalmente para os entes queridos de verdade. Quase toda gente fica.
Quando vem a hora de ganhar o pão, a ideia estabelecida é de que você, recém-chegado, está recebendo um favor por ser aceito naquele mercado de trabalho que funciona há anos, mesmo antes de sua existência. Ninguém ali precisa de você, mas curiosamente o pagam, ainda que pouco, pelo favor de aturá-lo. Portanto, não convém chegar antes do horário, sair depois e discutir ordens, por mais absurdas que pareçam. Se o chefe disser que dois e dois são cinco, você concordará e repetirá até ter a oportunidade de contar para o chefe do chefe que, na verdade, dois e dois são quatro. É das fases mais arriscadas. Se não for muito bem explicado, o chefe do chefe pode não entender e o demitir. Mas sempre há a chance de ganhar uma promoção, que, por sinal, é irresistível. Os que resistem se aposentam jurando que dois e dois são cinco, e vão para Peruíbe comer manjuba – o que, guardadas as proporções, não deixa de ser um prêmio.
A tirania do homem é para sempre. É o chamado instinto selvagem. Diante dela, há a opção de enfrentar o chicote ou se confortar com os torrões de açúcar. A maioria das pessoas prefere a segunda opção. Outras não aguentam e encaram as chibatadas. Os que sobrevivem levam cicatrizes profundas, que engrossam a pele e diminuem a sensibilidade, e que, tanto por imunizar a dor quanto por evidenciar as más lembranças, produzirão um novo ditador. Todos os homens da história que acreditaram no “olho por olho, dente por dente” acabaram cegos antes e banguelas depois, esquecendo-se de que a luta era pela liberdade, para no fim serem depostos pela geração consequente. Napoleão Bonaparte, Benito Mussolini, Fidel Castro, Muammar Kadafi que o digam. Por isso, muito melhor seria nem brincar com a hipótese do bicho-papão. Mas diante dela, antes que o monstro cresça e se torne realidade, convém sempre vigiar debaixo da cama.
Bicho-papão
por Léo Coutinho