Sandra Cinto ilustra nossa capa e edição
com sua Filosofia da Linha.
A obsessão é a mais ambiciosa das entregas na relação, e a mais larga também das exigências. Uma exigência exclusiva de perfeição e de intensidade absolutas, uma procura doentia de entrega total e de dedicação, uma cobiça maior a anular todo o resto – tão sobreposta que se coloca a tudo, essa expandida relação.
Como uma emoção excessiva e permanente, invasora e superlativa, esta ideia fixa e compulsiva – de direção constante, mas crescente – procura, sem nunca alcançar, a plenitude de uma compreensão; o dominador entendimento de um outro, a mais profunda penetração e conexão, o maior insight. É dominando através da ânsia de dominar – incontrolável, crescente, absurda – que esta emergência permanente se amplifica e contamina. Transformando assim uma visão/relação particular numa procura louca e incessante de mais, de maior, de melhor. Uma lenta corrida total, sem meta nem final.
Encontramos na obra de Sandra Cinto uma abordagem criativa e metódica, profunda e absoluta, com este altíssimo grau de entrega e exigência. Tanto no objeto tratado, claramente definido – o encontro das ondas do mar, o céu
estrelado e escuro, a selvagem natureza das águas, a tempestade contínua que sabe a metáfora clara de uma interioridade vulcânica –, quanto no processo de trabalho: os milhões de linhas que vão edificando lentamente aquelas vagas, aquela espuma, alimentando aquele encontro constante; e construindo um espaço, que é feito das pequenas partículas ínfimas do traço, que vai inventando e fazendo esse todo imenso. A escrupulosa dedicação minuciosa a um gigante que se ergue devagar…
A linha é, nesta obra, o fio condutor por onde avança e circula esta sempre crescente relação/narração, mas também a materialização no espaço – que vai criando e compondo – do próprio tema que é o alvo dessa criação. A linha corporiza e veicula a relação entre a artista e o seu assunto, dando também corpo a esse objeto, e com ele decidindo e construindo o lugar onde acontece esta estreita e explosiva relação. Na linha pulsa e flui esta convivência em tom de permanente descoberta; da linha se faz o corpo crescente e vivo do tema; é a linha que define o alto território onde tudo se dá e acontece. Como se refere Sandra Cinto a propósito de um trabalho recente: “Para mim, cada pequeno ponto, pequena marca, pequena linha, é importante… Uma espécie de filosofia, pensar que cada pequeno detalhe, pequena ação, pode mudar tudo…”
A escrupulosa dedicação minuciosa a um gigante que se ergue devagar…
É desta relação de intimidade fértil entre a artista e o traço que tudo vem, germinando nas horas de entrega solitária, erguendo-se no lento aprofundar de uma densa familiaridade. Olhamos aqui o oceano inventado saído de uma convivência funda que se levanta e expande, avançando sempre, saído e criado que está nessa interioridade relacional.
Se por um lado o tema se mantém constante, a relação com ele vai-se gerando e desenvolvendo em movimento, noutros espaços, noutros momentos, noutros tempos. Esta zona de interseção mutável entre a artista e o seu interlocutor exclusivo caminha e cresce continuamente; num ritmo próprio e autônomo, independente das partes que o alimentam. Pode-se dizer que, aqui, o terceiro elemento – a relação, a obra, a arte – manifesta-se como uma conversa livre que se vai indefinindo à medida que acontece, que se cria, que se espraia. Parece haver sempre e ainda muito por percorrer, por surgir, por desenhar. Como numa obsessão livre – sempre solta e ambiciosa –, encontramos aqui, e manifestado até na alta escala de algumas obras, um corpo de trabalho quase anárquico na sua transbordante e insolúvel fertilidade coerente; na sua natureza selvagem, irresolúvel, explosiva.
Mas ao contrário de algumas outras relações também íntimas e intensas, mas bem mais fechadas, neste seu processo particular a artista integra ainda outros sujeitos na ação, para além dos espectadores. Colaboradores que com ela regularmente vão também dando corpo à tarefa, e até voluntários, como aconteceu num recente mural feito para o Museu de Arte de Seattle. Esta postura de abertura e partilha acentua não só o caráter universal da sua obra – que parece apontar para a interioridade e para o inconsciente simbolizados pelas águas, como os planos onde se joga e acontece o verdadeiro pulsar e questionar primordial da vida
– como revela uma generosa oportunidade que nos é oferecida de participar numa relação que importa a todos entender, sentir, trabalhar. Fazer nossa também.
“Pôr o espectador dentro da água…” Nas palavras da artista.
Ao entrar na ação aparentemente estéril, mecânica e repetitiva que a linha impõe, somos convidados a entender, também criando, esta filosofia do pormenor; numa imitação que vai reproduzindo lentamente a enorme interioridade abstrata de que trata toda esta exteriorização minuciosa.
Parece ser de fato da interseção obsessiva e incontornável do homem com seu mundo interior – seu inconsciente profundo, seu lado mais eruptivo e imprevisível, mas condicionante e estrutural, o espaço do não orgânico – que trata este corpo de trabalho inteiro. A própria água parece materializar essa obsessão circular – sem limite ou fronteira – que surge em obras que querem continuar ao infinito; discorrendo sobre a urgência do olhar ao âmago ardente do que somos; ao pulsante inconsciente sobre o qual sempre agimos, pensamos, decidimos. Se por um lado são notórias a magnitude imensa e o poder incontrolável que o sentimento involuntário sobre nós exerce; igualmente se sublinha a obrigatoriedade da nossa relação com ele; clamando-se pela urgência permanente dessa descoberta em relação.
Longe da fechada rigidez cristalizada de outras fixações obsessivas, o trabalho de Sandra Cinto abre-se para nós na sua livre e solta coerência – partilhando-se, envolvendo-nos –, tratando conosco de avançar na narrativa ampla que vai fazendo de uma convivência íntima e única, mas universal e total. Discorrendo e alargando-se sempre, esta obra vai dando forma à nossa relação com o inalcançável e invisível inconsciente aquático, que mora altivo e solitário na natureza mais profunda do homem.