#33InfânciaCrônica

Sobre grades, fronteiras e gangorras – ou vem, Rael

por Léo Coutinho


Não sei se a turma da rua queria jogar vôlei ou se a vontade era só aprontar alguma. O fato é que Japa, Júnior, Peão, Peidolfô ou Arrotolfo, eu e outros decidimos pular o portão de uma casa desocupada e usá-lo como rede entre os times da garagem e da calçada.

A casa já tinha sido alugada para diversas atividades. Escola, escritório, puteiro. Mas a maior parte do tempo esteve vazia e sem função, situação que, somada à ociosidade criativa da molecada, acabou em jogo de vôlei.

Corria bem a partida quando um carro estacionou com certa agressividade e dele saltou um casal enfurecido. Eram os donos do imóvel vazio. O time da calçada correu, cada qual para seu prédio. Mas eu e os companheiros que defendíamos o chão da garagem não tínhamos como escapar, com o tiozinho muito bravo gritando junto à grade.

Ele dizia que era invasão, que podia atirar, que ia chamar a polícia, que a gente seria preso. Alguns do meu time se desesperaram. Se não me engano, um chegou a ajoelhar e pedir clemência. Em vão.

Sei lá como funciona a minha cabeça, mas desde moleque tendo a sofrer com ansiedade quando prevejo um problema. Depois que acontece, quando a cagada vira um fato, reconhecível, analisável, relaxo e volto a raciocinar com calma.

E assim, nem aí, eu encarava o dono da casa e sua senhora. Quando enfim ele parou de gritar, se mostrou indignado com a minha cara de relógio sem ponteiros. Então pedi desculpas pela invasão, disse que não havia prejuízo e que não faríamos de novo. E que ele podia usar a chave para deixar a gente sair ou poderíamos pular o portão, como havíamos feito para entrar. Talvez por apego à ordem, ele abriu a grade, deixou a gente sair e xingou mais um pouco. Ainda sugeriu que queria conversar com os nossos pais, mas era tarde. Ficou falando sozinho.

Em seguida, reunida a turma, minha calma virou assunto. Logo o gordo ansioso, o mais mimado, na hora da dura, ficara tranquilo. Como?

Hoje, eu acho que a soma das fraquezas é que produziram uma força. Por ser ansioso, eu sabia que podia dar problema e, de alguma maneira, me preparei, mesmo que inconscientemente. Por ser gordo, correr não era uma opção, ou pelo menos não se considerando que todos corriam mais do que eu. E, principalmente, sendo mimado, filhinho da mamãe, eu sabia que era protegido, que com a polícia não daria nada – ou ainda ficaria pior para o adulto –, e muito menos aquele senhor agrediria meninos brancos, de classe média, usando tênis importados e morando em paróquia “nobre”.

Com a boa notícia que encerrou julho, do brilhante arquiteto e professor de Berkeley Ronald Rael, que instalou gangorras na fronteira entre o México e os EUA, a história da turma da rua foi pescada pelos meus algoritmos.

Rael e sua equipe pensam no brinquedo há dez anos, lembrando que o muro vem sendo construído desde muito antes de Trump, mas que deixaram de falar sobre. Boa gente, o arquiteto enxerga o lado positivo do muro como discurso eleitoral, porque acende o debate.

Esse modo de pensar está no cerne da ideia genial da gangorra: a ação de um lado que provoca uma reação do outro, o equilíbrio que vem do desequilíbrio, o trabalho de um que depende do trabalho do outro, a empatia obrigatória entre as pessoas que nela brincam.

A brincadeira durou pouco, mas não por impedimento dos guardas de fronteira mexicanos ou estadunidenses. Estes não interferiram, e alguns até sorriram. Durou pouco porque era mesmo um evento – muito bem-sucedido –, e a segunda fase é passear com a ideia por aí.

Rael, por favor, venha aqui para o Jardim Paulista, na cidade de São Paulo, Brasil. Aqui, os chamados bairros verdes, que teriam jardins por toda a parte, estão hoje cercados por gradis muito parecidos com o que divide Ciudad Juárez e o Texas. Pelas calçadas, entre os mais de cem mil desabrigados paulistanos, há muitas crianças vendendo pano para a classe média passar, pedindo fraldas e leite em pó. Dentro dos condomínios, outras tantas crianças, todas presas e separadas de seus pais, vigiadas por babás. Seria ótimo ter a gangorra da sua turma para que elas pudessem brincar.


Originalmente publicado na edição Infância
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