Pare para pensar: o nu é muito mais do que uma condição física. O nu mais verdadeiro que se pode ver é a espontaneidade.
Alguém pode se apresentar totalmente nu: um caráter genuíno, a humildade, a simplicidade, a veracidade nas palavras, a sinceridade de opiniões e gestos e, principalmente, a transparência podem ser formas de nudez muito mais evidentes do que um ensaio de nu artístico.
Em um mundo globalizado, louco, capitalista e competitivo, difícil é encontrar quem se mostra verdadeiramente como é: com talentos e conhecimentos, mas também com limitações e medos.
Muito ouvimos falar da cultura oriental. Há muito tempo, nós, ocidentais, nos rendemos à gastronomia deles. Pois é de lá do Oriente, é lá do Camboja, de um pedaço do Globo cujo povo vive de maneira tão diferente da nossa, que trazemos a reflexão do nu para a Amarello.
NAVEGAR É PRECISO
Viajar nos ajuda a enxergar outras referências e, assim, compreender nossa própria forma de viver.
Em uma jornada, muitas janelas se abrem para o viajante. Em uma cultura diferente, uma das principais é a possibilidade de se tentar pensar com a cabeça dos habitantes locais.
No Camboja foi assim. A simpatia, a humildade e a transparência do povo cambojano tornaram-se um convite para a tentativa de compreender a natureza deste carisma nu.
Nós, brasileiros, somos conhecidos em todo o mundo como um povo de notável simpatia. Aqui o visitante chega e repara logo na nossa vocação para a comunicabilidade e a alegria. No Camboja, uma cultura absolutamente diversa da do Brasil, não. Ou melhor, não e sim: ao chegar, somos recebidos por um povo que esbanja uma simpatia que é tão verdadeira quanto diferente da nossa. A primeira grande chave é a ingenuidade dos cambojanos, totalmente antagônica à conhecida malandragem brasileira.
Nossa brisa de malícia carnavalesca nunca soprou por aquele canto do mundo…
Analisemos a história deste país, localizado no sudeste da Ásia, às margens do Golfo da Tailândia, mantendo fronteiras com o Vietnã, o Laos e a própria Tailândia e que passou por uma das ditaduras mais sanguinárias que o mundo já viu (ou melhor, que o mundo não viu e nem soube):
Entre os séculos I e XIV , o Camboja foi um poderoso reino. Com seu declínio, o país se tornou um mero joguete nos conflitos globais e regionais entre tailandeses, vietnamitas, franceses, japoneses e americanos. A Guerra do Vietnã abriu caminho para que a organização extremista e marxista Khmer Vermelho, liderada pelo ditador Pol Pot, tomasse o poder em 1975 e iniciasse um dos maiores genocídios do século XX.
Castigado pela ditadura dura e violenta de Pol Pot, o Camboja viu serem exterminadas quase todas as suas famílias ricas, com instrução, ligadas à política junto com professores, médicos e toda a classe intelectual. Viu o resto do país ser transformado em um grande campo de trabalhos forçados. Verdadeiras atrocidades aconteceram no país durante a década de 1970. Enquanto o coro comia no Vietnã, autoritário e cruel, Pol Pot castigava o Camboja com sua ditadura dura e violenta. Em 1978, tropas vietnamitas invadiram o Camboja e expulsaram o Khmer Vermelho do poder, mas logo após a invasão, uma feroz guerra civil eclodiu e perdurou até 1991.
Se a principal estratégia do ditador foi extinguir as cabeças pensantes do país para que pudesse tomar o poder total sem ser questionado, hoje a população ultra jovem e predominantemente rural vive as consequências:
• Mais de 11 milhões de pessoas vivem no Camboja e quase a metade tem idade inferior a 15 anos.
• Pouco mais de 20% vivem em áreas urbanas e, portanto, a grande maioria da população vive em pequenas vilas na zona rural.
A pergunta é: como um massacre pode colaborar para que um país venha a ter uma geração dócil e hospitaleira?
Nessa parte da história, a classe intelectual foi eliminada. O que resta é analisar o que sobra, então, de um povo. Simplicidade, com certeza.
Aqui temos algumas pistas do que poderia compor o caráter transparente e puro dos cambodianos…
A religião, primeiramente, que ampara e orienta a pessoa no seu GPS espiritual de “quem sou eu, o que faço aqui e para onde vou?”.
No Camboja, o budismo tem uma forte presença em todos os aspectos da vida dos locais. Ter regras e valores espirituais para orientar a vida parece ajudá-los, e muito, a serem mais tranquilos, terem menos paranoias, menos dúvidas, menos ansiedade e mais aceitação.
E não menos importante temos o valor do respeito. Este respeito, quando bem fundamentado, não serve somente para respeitar os mais velhos ou os mais fortes, mas sim respeitar a tudo e a todos. A verdade é que a inocência e o carisma no Camboja tornam-se escandalosamente nus ao olhar do visitante estrangeiro.
Uma coisa é certa: ali ninguém está fingindo nada! Mesmo porque não há muito o que se fingir. No meio da pobreza, que é a simplicidade da vida agrícola, a verdade está ali para todo mundo ver: a verdade liberta. E esta liberdade torna-se leve e nua para quem enxerga além das aparências e aprende como observá-la.
Tudo o que oferecem, palavras, sorrisos, expressões curiosas, a bondade genuína de ajudar e servir são plenas verdades, nuas e cruas.
Historicamente castigados e humilhados, estas pessoas, em sua maioria camponeses, são hoje conhecidas entre viajantes de todo o mundo como um dos povos mais carismáticos e simpáticos do planeta. Estranho… ou melhor: diferente! São pessoas puras, ingênuas e muito verdadeiras. Igualmente inteligentes, como a classe intelectual previamente extinguida pela ditadura. Com uma diferença: pensam com o coração. Sua inteligência atende também pelo nome de resignação. São conformados, não alimentam grandes expectativas não porque não possam ter, mas porque parecem preferir estar exatamente como estão.
UMA PROPOSTA A SER DIFERENTE
Um dos pontos visitados pelos turistas são as chamadas Massive Graves. Estas covas para massas de pessoas eram construídas justamente para receber montanhas de corpos assassinados pelo ditador, que ia atrás dessas pessoas para “limpar” tudo e todos que estivessem no seu caminho.
Isto tudo pode fazer pensar: “cada um não deve, afinal, enterrar também um pouco de seu orgulho ferido, alguns sofrimentos sentidos e medos possíveis para dentro das “covas de massa?”
É a pergunta que faz o turista diante do povo cambojano que, apesar de tudo, com certeza consegue transmitir felicidade. Talvez, pensamos, ser genuinamente alegre e naturalmente simpático é o mesmo que ser verdadeiramente feliz e entregue para vida como ela é. Nu.
Ser conformado não significa ser bobo, como o malandro se recusa a ser, mas sim um convite para entregar os ressentimentos todos, individuais e coletivos. Um convite a nos despir da carapuça de aparências e curtir uma nudez de atitude.