#20DesejoCulturaLiteratura

Os olhos de Sidharta

por Ananda Rubinstein

Não sinto nada, a não ser um gosto de metal na boca; é o que digo na sessão com o Dr. Sidharta Singh, a primeira, no seu consultório branco e minimalista, com toques orientais de um passado recente.

Ele me observa sob seu turbante azul, com olhos negros, por um tempo que não sei medir, já que vivemos um presente sem fim. Da cadeira ovo em que me sento posso ver – estamos no 39o andar – algumas cápsulas voadoras que passam disparadas à altura da janela. Famílias entediadas, coletivos sem propósito e viajantes com destinos ultraplanejados transitam no ar. É um dia bonito de junho, ano de 2049. Sinto o sol quente e o prazer instantâneo do calor na pele logo dá lugar a um vazio frio. Tento me lembrar por que estou aqui, mas meu cleverphone está sem sinal.

Meu diagnóstico, eu mesma adianto: desejo hipoativo. Dr. Sidharta diz, Fale mais sobre isso, Lara. Não sinto nenhum desejo nem a formação de nada que se pareça com a inspiração de um querer mais profundo. Alguns espiritualistas diriam que você se livrou do sofrimento de desejar, ele tenta. Olho para ele com meus olhos opacos.

Sabe como é, tudo o que faço na web, cada busca, cada post, alavanca um novo produto criado especialmente para me definir ou aplacar minhas compulsões. Os infinitos hashtags permitem que em zeptosegundos milhares de conexões sejam feitas entre um prazer instantâneo e a possibilidade de um desejo de consumo que não chega a nascer, porque já foi intuído e transformado em wish list inconsciente. Não é desejo; é vício.

Tudo o que tenho de fazer é dizer sim, não há nãos. Minhas bandas, livros e filmes favoritos foram tão plagiados, e com tanta eficiência, que só posso apreciá-los friamente. As emoções não são muito suscitadas: atrapalham o funcionamento das coisas. Importante é o próximo estímulo. Fazer sexo com humanos ainda rola, esporadicamente, mas com softwares de inteligência artificial, robôs ou desconhecidos on-line, o custo/benefício tende a ser maior.

Por quê? O prazer é maior?, ele pergunta. Não. Eu hesito: às vezes, na verdade; essas máquinas são treinadas para fazer exatamente o que quero. Então é consistente, sem todos os riscos que relações com humanos podem trazer: os robôs nunca te dão foras. E tem um que entende de arte, é engraçado até; ando passando mais tempo com o Cyberman 13. Existe um afeto, então?, questiona Dr. Sidharta. Quando ele é recarregado por tempo suficiente… mas… é uma pulsão de vida que me falta. Tem cura, Dr. Sidharta? Nos olhos negros não há resposta.

Você pode me falar de momentos prazerosos que já tenha vivido?, ele indaga.

Não tenho acesso a estas pastas, explico.

Quando percebi que estava perdendo a memória ou o acesso a ela, uma amiga hacker me apresentou alguns fóruns da teia infinita profunda. Há milhares deles. Frequento um clube submerso em que é possível ter contato com os chamados ‘feelings’, reminiscências de um passado moderno/romântico. Ali há restos de memória, fala-se de tempo e desejo; de sensualidade, mundo, poesia, espiritualidade; conceitos que hoje não são mais que ficções.

Chá? Aceito uma xícara para tirar o gosto da boca. O calor perfumado sobe pelas minhas narinas, forte, picante, e chega no meu cérebro como um choque elétrico. Meu corpo todo parece vibrar. Há anos não sinto cheiro de nada!, digo, e tento escanear as reações sutis da experiência. Sidharta me olha, seus olhos sem íris, de tão pretos.

Algumas cenas e imagens são descarregadas das minhas pastas mentais. Sou presa nas engrenagens de uma máquina; danço com um homem de polainas; um trenó me leva rapidamente para a infância; um homem me lambuza de whip cream e lambe; num conversível, me jogo no abismo. Calma, não reconheço essas memórias!

Não se preocupe com memórias muito claras; elas não são tão confiáveis, de qualquer forma. Ele se levanta e se aproxima quando diz isso, me guardando um segredo, o mais importante: a memória é o hiperlink para o desejo.

Mas essas memórias não são minhas, digo, atônita, e mais uma pasta se abre: estou num campo de trigo, com corvos; o céu escuro, três possibilidades de caminho; as cores vibram. Dr. Sidharta me olha, respira fundo e faz som de telefone, que não existe mais, trim trim, 2049 para Lara. Vivemos uma hiper-realidade, lembra? Tanto faz se as memórias são ficções: são suas ficções. O importante é a conexão, é ter contato com elas, diz Sidharta, agora quase flutuando.

Então, quer dizer que, baseada em memórias fictícias, vai brotar um desejo real? E como vou saber se esse desejo é meu mesmo?

Suas memórias – fabricadas ou emprestadas – já apontam para um desejo. Ou para múltiplos desejos. Um não existe sem o outro. Até a próxima semana?

Já? O efeito do chá passou. Olho mais uma vez nos olhos do Dr. Sidharta, agora flutuando, para ver se sinto alguma coisa. Não. Por enquanto, nada.