Naná Vasconcelos diz que o afrofuturismo é a liberdade da expressão dos músicos alternativos, que não têm compromisso com a mesmice: 

(…) Às vezes, as pessoas pensam que eu estou em um mundo totalmente diferente. Não, eu sou um músico aberto a tudo. Essa música não tem compromisso com nada, é liberdade total e eu gosto de fazer parte disso. (…) Essa ideia de futurismo, a gente vai lá procurar, porque o que a gente já sabe, a gente já sabe. Porque a gente está procurando tocar o que a gente não sabe. (…) Meus elementos são muito percussivos, meu trabalho está muito dentro do afro, sabe? Minha cabeça está muito no futuro. 

Então, Naná nos brinda com sua risada, quase encantada.

O afrofuturismo é um movimento estético-político que trata de ficções especulativas, imagens tecnológicas, visões de futuro, assim como revisões históricas. São criações de pessoas afro-diaspóricas e africanas, cujas referências estão em cosmologias negras. As narrativas afrofuturistas são ferramentas críticas à hegemonia cultural eurocêntrica e produzem imaginários em que indivíduos negros são agentes centrais da construção de mundos, ideias, ciência, história, teorias, técnicas e tecnologias. Esse exercício faz parte do trabalho de resgate das memórias culturais, históricas e políticas negras que contemplam as existências e subjetividades dessas populações e indivíduos. Um trabalho arqueológico para a construção de futuros.

A música afrofuturista tem como primeiras sugestões do que representaria seu imaginário sonoro as músicas de Jimi Hendrix, Herbie Hancock, Lee “Scratch” Perry, George Clinton, com seus grupos Funkadelic eThe Parliaments, e Sun Ra. As sonoridades propostas por esses artistas norteiam as compreensões de tecnologia e ficção em um primeiro momento.

Sun Ra, George Clinton e Lee “Scratch” Perry são reconhecidos como “fundadores” do som afrofuturista. Os três têm em comum a criação de mitologias próprias, de performances marcantes, e o uso de figurinos em contextos musicais diferentes, como o reggae, o jazz e o funk norte-americano. Ra com sua Arkestra, Perry com as suas produções no estúdio Black Ark, que produziu os grandes nomes do reggae nos anos 60 e 70, e Clinton construíram universos estéticos únicos, explorando as possibilidades de produção e gravação de som na elaboração conceitual de seus discos e performance. Através das capas dos álbuns, dos figurinos e das sonoridades, eles trazem imaginários cósmicos, dimensões espirituais, criando uma experiência multissensorial, de onde emergem ambientes futuristas que, em comum, tratam da marginalização da cultura negra, utilizando metáforas espaciais e alienígenas. 

Sun Ra provavelmente é o artista que melhor exemplifica essa construção conceitual. Ele criou um arcabouço de ideias que conectam mitologia Kemet, cosmos, questões sociopolíticas negras, tecnologia, som, poesia e dança ― sua mitologia científica.

Em sua proposição de música, Ra busca nos familiarizar com culturas de outros planetas, suas danças e músicas não usuais. Suas inspirações são as forças da natureza, os deuses místicos ― todos músicos, independente de gênero musical. Ele comenta sobre duas composições: 

Retrospect não é sobre memória, é só sobre pensar em algo, no futuro, no passado, no presente, sobre algo que é totalmente impossível. Esse tipo de música apenas se alcança com as potências da humanidade, as potências de coisas eternas. (…) Sobre a música Face the Music, considero que a música é a verdade. O que estou dizendo é para encarar a verdade. Então é isso que este planeta tem que fazer agora. Temos que nos que ajustar a outra forma de pensar e ser.

O que o Sun Ra cria em sua mitologia o crítico cultural Kodwo Eshun chama de ficção sônica. O conceito ressalta as experiências sonoras e sensoriais da produção sonora afro-diaspórica. Em seu ensaio sobre visões da música do futuro, são abordados o jazz eletrônico, o dub jamaicano, o techno, o hip-hop, o jungle e o drum n’bass, e o nexo é recorrer a som e ficção científica para abordar essas culturas e técnicas. 

A ficção sônica consiste em pequenas notas, aforismos, anotações, samples, gestos performativos, design da capa de um álbum, figurinos e criação de novos instrumentos ou softwares pelos artistas. O conceito representa historicamente a mistura de sentidos, práticas, sensibilidades e técnicas. Ainda se ressalta esses criadores como “pensadores sonoros”, engenheiros conceituais, colocando os artistas como figuras fundamentais na própria concepção do que é a música e quais são seus fundamentos teóricos.

O compositor George Lewis faz uma provocação que abre caminho para outras possibilidades de pensamento acerca do som afrofuturista. A questão é: o que o som, sem as fantasias e os títulos sugestivos, pode nos dizer sobre o afrofuturismo? Ele aponta a tríade raça, som e tecnologia para buscar respostas. Diante disso, temos a oralidade como tecnologia de manutenção e de transmissão da memória. Ou seja, através da oralidade, essas práticas sociais sonoras negras se mantêm e seguem suas transformações durante a história. 

Com o surgimento do fonógrafo, na virada do século XX, os discos criam uma nova dimensão da oralidade e da disseminação dos sons entre as diásporas. Consequentemente, as tecnologias atuais de gravação e reprodução sonora influenciam a produção, a disseminação musical e as novas técnicas e linguagens sonoras.

Lewis tem um extenso trabalho, desde 1980, elaborando sistemas interativos eletrônicos com a premissa de ensinar computadores a improvisar, como no álbum Voyager. O compositor, em sua provocação, apresenta alguns nomes que comumente não são relacionados ao afrofuturismo, como a compositora Pamela Z, que desenvolve dispositivos eletrônicos para suas criações que permitem manipular em tempo real sua voz, criando múltiplas camadas sonoras, e o egípcio Halim El-Dabh, que, em 1944, compôs The Expression of Zaar ao registrar o ritual Zaar, uma manifestação religiosa que acontece nas ruas do Cairo, e posteriormente manipular as gravações com equipamentos do estúdio da rádio da cidade, usando câmeras de eco, filtros e todos os recursos que ele tinha à disposição para criar uma ambiência fantasmagórica, dentro de uma estética que se estabeleceria, a partir de 1948, como a música concreta, umas das linguagens musicais da vanguarda europeia.

Para inserir o Brasil dentro desse pensamento, gostaria de trazer o raciocínio do maestro Letieres Leite, que afirmava que as claves rítmicas, pequenos ritmos ou toques, são como um chip de computador, pois contêm a identificação étnica, geográfica e o deslocamento do grupo na diáspora. São tecnologias sociais e sonoras presentes na música brasileira. Um exemplo é o toque ijexá, cuja origem “é o etnônimo Ijèsà, subdivisão da etnia iorubá, que tem por capital a cidade nigeriana de Ilésà e cujo ancestral é Óbokún”, segundo a Enciclopédia brasileira da diáspora africana. A partir dessa organização temporal que as claves estabelecem, as músicas se estruturam, entidades dançam e o ritmo do trabalho é marcado. 

Casos como os toques de lundu, jongo, maculelê e capoeira representam tecnologias sonoras afro-brasileiras cuja continuidade marcam as sonoridades da música contemporânea brasileira através de suas organizações rítmicas e timbrísticas. Seria uma espécie de sankofa sonora, com sons que atravessam todo o arco da história, se desdobrando no tempo. 

Outra dimensão dessas tecnologias sonoras é o caráter de subversão, como o prato e a faca, símbolo colonial que então se torna um instrumento percussivo, sensível e de uma riqueza de som que marca essa capacidade de invenção, de ressignificação de instrumentos e suas possibilidades sonoras. O caráter de invenção é recorrente na diáspora, como o surdo, com o couro ancorado na lata de manteiga por Alcebíades Barcelos, o Bidi, um dos fundadores da primeira escola de samba no Brasil, a Deixa Falar, no Estácio, no Rio de Janeiro, em 1928. 

Tal fato é um marco para a música negra no século XX. O efeito dessa criação e de toda a sua história, a partir da década de 30 até chegar em 1997, com a paradinha funk do Mestre Jorjão à frente da bateria da escola de samba Viradouro, é o de conectar passado, presente e futuro, unindo as diversas veias dessas tradições e apresentando um viés experimental. Da mesma forma, o funk incorpora as sonoridades anteriores ao inserir samples de berimbau, conga e atabaque nas batidas de volt mix, emergindo os padrões do tamborzão e suas sínteses vocais com o beatbox.

A massificação das tecnologias digitais, como os softwares de edição áudio, é fundamental para as músicas negras e suas técnicas de criação. Daí surgem as novas linguagens, como o funk 150BPM, que funde a experiência entre a manipulação de ritmo e som a partir de uma garrafa pet para esculpir a batida Coca-Cola do Dj Polivox. Os procedimentos técnicos aplicados são similares ao que Halim El-Dabh realizou nos anos 40, compartilhando fundamentos da música eletrônica, como o corte e a filtragem para gerar novos sons.

Diante desse panorama, o som afrofuturista e a ficção sônica são lentes que permitem observar as conexões dos elementos sonoros negros aos contextos históricos, políticos e sociais globais e locais e suas transformações ao longo do tempo. São perspectivas que contam as histórias das diásporas negras, revelando misturas, ressignificações e invenções, expondo uma lógica do fazer musical, em que a interação, a improvisação, o groove, o corpo, o suingue, a comunicação, a mistura, a multissensorialidade e a experimentação na construção de uma identidade sonora são motores de sua continuidade no tempo e de especulações sobre o futuro através das vibrações.


(Esse texto é o resumo da transcrição da aula apresentada para o evento Dundun Sintético organizado pela BSAM Brasil.)