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#49SonhoSociedade

De negro banzo a negros sonhos

Sonho meu, sonho meu
Vai buscar quem mora longe
Sonho meu
Vai mostrar esta saudade
Sonho meu
Com a sua liberdade
Sonho meu
No meu céu a estrela-guia se perdeu
A madrugada fria só me traz melancolia
Sonho meu

(Sonho meu, de Délcio Carvalho e Yvonne Lara da Costa)

Os sonhos, essas vivências sentidas na mente e no corpo, muitas vezes bizarras, que povoam nossas mentes durante o sono, há séculos fascinam e intrigam a humanidade. Envoltos em mistério, eles desafiam interpretações simples e abrem portas para um universo onírico de simbolismos e reflexões profundas sobre nós mesmos.

Do ponto de vista científico, os sonhos são eventos mentais que ocorrem principalmente durante a fase conhecida como REM (rapid eye movement) do sono, quando a atividade cerebral se intensifica e se assemelha à vigília. Nessa etapa, o cérebro processa informações, consolida memórias e libera emoções reprimidas, tecendo narrativas complexas que podem ser vívidas, emocionantes ou até mesmo perturbadoras.

Embora a ciência ainda busque desvendar segredos dos sonhos, algumas teorias tentam explicar sua função e seus significados. Para a psicanálise, os sonhos são a janela para o subconsciente, revelando desejos, conflitos e medos reprimidos que, por vezes, se manifestam de forma simbólica ou distorcida. Já a neurociência propõe que os sonhos sejam uma forma do cérebro se livrar de toxinas e processar informações acumuladas durante o dia, consolidando memórias e aprendizados. Os sonhos, muitas vezes vistos como meras fantasias da mente adormecida, também podem ser a força motriz por trás de grandes mudanças sociais e políticas. São eles que alimentam a esperança por um futuro melhor, inspiram a luta por justiça e igualdade e impulsionam a inovação e o progresso.

Sendo  assim, cabe traçar um paralelo entre os sonhos já citados — aqueles fenômenos que ocorrem enquanto dormimos e o sonho num sentido simbólico e político, no sentido de projeções de algo que se tem desejo de concretizar, ver, ter ou fazer.

Em O dono da dor, música lançada em 1997, composta por Nelson Rufino e conhecida na voz de Zeca Pagodinho, canta-se que:

Ninguém pode imaginar
O que não viveu”

Esse verso, cantado a plenos pulmões em milhares de rodas de samba, abre despretensiosamente o caminho para refletirmos: como imaginar ou sonhar com aquilo que não vivemos ou que não nos foi permitido viver? Essa vida vivida e sonhada sem permissão é algo que comumente perpassa a existência e a produção intelectual e artística de pessoas negras.

A literatura negra tem sido um espaço vital para a exploração de temas profundos e complexos, incluindo os sonhos e a imaginação. Autores negros, em diversos contextos históricos e culturais, têm usado esses elementos como ferramentas para desafiar narrativas opressoras, reimaginar realidades alternativas e afirmar suas identidades. A imaginação, para muitos deles, não é apenas um exercício criativo, mas uma forma de posicionamento e sobrevivência.

Toni Morrison, por exemplo, em  Amada (Beloved), utiliza elementos do sobrenatural e do sonho para explorar traumas passados e a memória coletiva dos afro-americanos. A presença do fantasma de Amada (Beloved) simboliza não apenas a perda e o luto, mas também uma forma de retomar a agência sobre um passado doloroso. Morrison cria um espaço no qual o real e o imaginário se entrelaçam, permitindo que a história de uma comunidade seja contada de forma não linear, desafiadora e profundamente humana.

Os sonhos, na literatura negra, muitas vezes servem como projeções de esperança e desejos para um futuro outro. No romance Homem invisível (Invisible Man), de Ralph Ellison, o protagonista sonha com uma sociedade em que ele é visto e valorizado, contrastando com sua realidade de invisibilidade social. Esses sonhos não são meramente escapistas, mas funcionam como críticas contundentes às estruturas sociais existentes e como expressões de um desejo profundo por mudança e reconhecimento.

Octavia Butler, uma das mais proeminentes escritoras de ficção científica negra, utiliza a imaginação para reconfigurar identidades e explorar possibilidades alternativas para a humanidade. Em Kindred, Butler mistura elementos de viagem no tempo com uma narrativa profundamente enraizada na experiência afro-americana. Através da protagonista Dana, a autora explora como as identidades são moldadas e reconfiguradas pelo passado e pelo presente, utilizando a imaginação para criar uma narrativa que transcende as limitações temporais e espaciais.

Nas literaturas africanas, o sonho frequentemente assume uma dimensão coletiva, refletindo as aspirações de comunidades inteiras. Chinua Achebe, em O mundo se despedaça (Things Fall Apart), captura o espírito de uma sociedade à beira da mudança. Embora o romance se concentre principalmente nas realidades sociopolíticas de uma comunidade igbo, os sonhos e as visões das personagens revelam um anseio por equilíbrio entre tradição e modernidade. Esses sonhos, muitas vezes fragmentados e intercalados com realidades duras, oferecem uma visão sobre as tensões e esperanças dentro da comunidade.

Autores contemporâneos, como N. K. Jemisin, têm expandido ainda mais os limites da imaginação na literatura negra. Em sua trilogia A terra partida (Broken Earth), ela constrói um universo complexo no qual a geologia e a magia se entrelaçam, criando um mundo que é ao mesmo tempo familiar e radicalmente diferente. Através de uma narrativa que mistura elementos de fantasia e ciência, Jemisin explora temas como opressão, sobrevivência e transformação, utilizando a imaginação para questionar e desafiar as realidades do nosso próprio mundo.

Passear pelo universo dos sonhos e da imaginação na literatura negra não é apenas um testemunho da criatividade e resiliência da autoria negra, mas também uma poderosa ferramenta de proposição social, incidência e afirmação cultural. Através das obras de Morrison, Ellison, Butler, Achebe, Jemisin e muitos outros, podemos perceber e experimentar formas para reimaginar identidades, desafiar estruturas opressivas e projetar esperanças para o futuro.

Os sonhos não são apenas retrospecções ou formas de escapismo, mas também projeções de futuros possíveis e desejáveis. Para o movimento negro, a capacidade de sonhar com um futuro melhor tem sido fundamental para a motivação e mobilização. Martin Luther King Jr., em seu famoso discurso Eu tenho um sonho (I Have a Dream), encapsula a essência desse impulso. Seu sonho de uma sociedade justa e igualitária serviu como um poderoso catalisador para a luta pelos direitos civis, inspirando milhões a acreditar e trabalhar por essa visão de futuro.

Quando Dona Ivone Lara fala de “buscar quem mora longe, sonho meu” podemos fazer uma leitura óbvia sobre um amor perdido ou distante. Mas também podemos ir além e pensar esse sonho e essa busca como banzo. O banzo pode ser entendido como um fenômeno histórico e cultural que afetou profundamente a população africana escravizada no Brasil. Trata-se de um estado de melancolia profunda, nostalgia e depressão experimentado por escravos africanos, muitas vezes levando-os à morte por inanição ou ao suicídio.

Do ponto de vista psicológico contemporâneo, o banzo pode ser compreendido como uma forma extrema de depressão. Estudos em psicologia e psiquiatria mostram que a perda de laços sociais e culturais, combinada com condições de vida abusivas, pode levar a estados severos de depressão. A ausência de perspectivas de liberdade e o tratamento desumano contribuíam para um estado de desespero tão profundo que muitos escravizados perdiam a vontade de viver. Clinicamente, o banzo pode ser comparado a transtornos depressivos maiores, com sintomas como perda de apetite, insônia, apatia e pensamentos suicidas. Politicamente, o banzo evidencia a crueldade do sistema escravocrata e serve como testemunho da resistência física e espiritual dos escravizados. Embora frequentemente interpretado como uma forma de desistência, o banzo também pode ser visto como um ato de resistência silenciosa. Ao se recusar a participar do sistema que os oprimia, os escravos que sucumbiam ao banzo estavam, de certa forma, reivindicando autonomia sobre suas vidas e mortes.

O banzo, esse estado de melancolia profunda, e o sonho, tanto como forma de resistência quanto de esperança, são conceitos interligados na experiência da diáspora africana. Essa relação é complexa e multifacetada. Ambos são respostas ao mesmo conjunto de circunstâncias opressivas, mas manifestam-se de maneiras diferentes. Numa visão mais superficial, o banzo pode ser visto como um colapso da esperança, um diálogo com o desespero, enquanto o sonho pode representar a projeção de uma outra realidade. No entanto, mesmo no banzo, pode haver traços de sonho: a nostalgia e o desejo de retorno à terra natal podem ser vistos como uma forma de sonhar com uma realidade perdida ou que pode ser (re)inventada.

A imaginação tem papel central na reconfiguração das identidades negras, desafiando estereótipos e preconceitos. E assim voltamos a Zeca. Se ninguém pode imaginar o que não viveu, inventamos! Ao longo de séculos, a existência negra tem alternado entre a concretude de sociedade racistas e a projeção de universos outros, nos quais se pode existir de forma menos cruel e cristalizada. No contexto do movimento negro, os sonhos e a imaginação não são apenas individuais, mas coletivos. Eles ajudam a fortalecer a coesão comunitária, criando um senso de propósito e solidariedade. O movimento Black Lives Matter, por exemplo, utiliza a imaginação para vislumbrar um mundo sem racismo sistêmico e violência policial. Esse sonho coletivo fornece um quadro para a ação política e social, inspirando protestos, políticas e mudanças comunitárias. São essas projeções que têm impulsionado lutas concretas com resultados palpáveis e mensuráveis.

O poder dos sonhos não se limita a escritores, artistas, grandes líderes e movimentos sociais. Ele reside também em cada indivíduo que ousa imaginar um futuro diferente, que se recusa a aceitar o status quo e que luta por um mundo equânime.

Sonhos podem ser subversivos, desafiando as estruturas de poder existentes e questionando as normas sociais, especialmente quando falamos de trajetórias negras. Eles podem ser a faísca que inicia revoluções, as vozes que denunciam injustiças e a força que impulsiona a busca por um mundo mais justo e sonhado.