Polivox: Índio da Cuíca
Índio da Cuíca é um artista experiente. Nascido no Morro do Borel, na zona norte do Rio de Janeiro, filho do fundador da escola de samba Unidos da Tijuca, Índio inicia sua jornada artística muito cedo, e mostra, através da arte, que descende de uma nobre linhagem. Um mago do som, com a incrível habilidade de fazer a cuíca protagonizar como um instrumento solista. Seu primeiro disco com composições próprias foi gravado aos 70 anos de idade.
Seu álbum Malandro 5 estrelas (2021) é sensacional, no sentido de confluir rios: vários malandros num só, se despindo, tirando o chapéu, o sapato, o paletó, até terminar com um funk — calçado e descalço, de terno ou sem camisa. Tudo isso é de uma brasilidade absurda; é uma narrativa atemporal e ancestral. As paisagens sonoras e orais que Índio da Cuíca evoca são fruto de uma imaginação radical.
Sara ― Vamos começar a conversa do zero. Eu gostaria que o senhor falasse um pouco da sua infância, porque sei que ela vai se cruzar com o seu trabalho.
Índio da Cuíca ― Minha infância foi bem engraçada. Meu pai já tocava cuíca e cavaco, era compositor, cantava muito. Ele era seresteiro. Aprendi muita coisa com ele, esse meu talento vem mais dele. Eu tinha seis anos quando ganhei um pandeirinho de plástico. Com 12 anos, saí na escola de samba como pandeirista. Saí na Império da Tijuca, que ganhou troféu. Naquela época não era Estandarte de Ouro, era troféu. E a escola não me deu o troféu. Aí eu disse pra mim mesmo: “nunca mais vou sair em escola de samba”. E até hoje tenho fobia de escola de samba.
Viu que ali não era o seu lugar?
É, não era o meu lugar, não dava pra mim. Depois me tornei um profissional, e o Sambão e Sinhá foi a primeira casa em que eu trabalhei, em Copacabana, ali na Constante Ramos. Naquela época não falava banda, não, era conjunto, um quinteto.
E, nesses grupos, qual repertório vocês estavam tocando?
Naquela época não tinha contrabaixo nem nada, era pandeiro, tamborim, surdo e reco-reco.
E vocês cantando?
E nós cantando. Depois entrava com pandeiro, fazia aquele malabarismo, que hoje não faço mais, e terminava ali. Aí acabou o conjunto e eu parti pra São Paulo, novo ainda, na época com 16 anos.
Isso já era o Boca de Ouro?
Não, ainda não. Depois que acabou o conjunto fui pro Brasil Ritmo. Eles estavam no auge, e eu jamais esperaria um convite deles, mas o Neném me viu tocando pandeiro e disse: “Estou precisando lá de um reco-reco”. E eu falei: “Eu vou”. Tempos depois, quando o Neném foi trabalhar com o Jorge Ben, faltou uma cuíca. “Índio, você toca cuíca?”. Falei: “Toco”. Naquela época, eu tocava como amador, aquele toque tradicional, então comecei a estudar cuíca seriamente. Me tranquei no quarto, comecei a estudar pra me tornar uma pessoa com destaque, inédita. O primeiro solo foi o Calango na cuíca, que foi a minha primeira composição. Mas como tinha que solar músicas conhecidas, músicas clássicas, estudei Samba de uma nota só, Garota de Ipanema, Brasileirinho, aí comecei a aparecer e a ficar famoso na noite. Quando fui pra Globo, encontrei o Zeca da Cuíca, que era o destaque do momento com o Originais do Samba. Cheguei lá sem saber o que eu ia fazer, gostaram de mim, do meu trabalho, e comecei a fazer Brasil Pandeiro, Globo de Ouro e Brasil Especial.
Isso é quando, que ano?
Foi nos anos 70, entre 74 e 76.
Seu Índio, o seu nome é nome artístico, porque olhando para você, você é um cruzo entre o indígena brasileiro e o africano. Sem dúvida isso está em você e na arte que você expressa, até porque “Índio da Cuíca”… Eu fui até ver qual era a origem da cuíca. Tem cuíca em tupi. Eu fiquei curiosa com seu nome.
É o nome que eu… Eu não gosto de falar meu nome.
Não precisa falar.
Então, eu tenho mais afinidade com Índio. É porque eu usava o cabelo grandão, tinha o cabelo até as costas. Depois, quando entrei no mundo artístico, botei o nome artístico. Essa época dos anos 70 foi muito importante pra mim, porque viajei muito. Viajava muito com o Ivon Curi e o Franco Fontana. O Fontana era italiano, chegava no Brasil, selecionava uns 46 artistas e levava para fazer turnê na Europa e na América.
Conheceu a dona Shirley, sua esposa, nessa época?
Conheci ela quando tinha 16 anos, porque morávamos perto e via ela indo para o colégio. Mas fomos ficar juntos mesmo quando eu já tinha 32 anos. Depois de uma viagem em que fiquei na Suíça por uns três anos e meio, voltei e resolvemos montar uma dupla. Viajamos para a Alemanha e para Miami.
Cantando?
Cantando e dançando. Ela sambava na Brasileirinho. E sempre tive um sonho de gravar isso. Tempos depois, o produtor Paulinho Bicolor me viu na Orquestra de Solistas do Rio de Janeiro e me ajudou a gravar. Foi aí que completei o Calango, minha primeira composição, e fiz A cuíca chora e A cuíca malandra para o meu primeiro disco. Tudo pra esse disco.
Então foi o desejo do disco que fez você colocar sua estilização e enquadrar a cuíca como esse instrumento solista, protagonista?
Isso. Mas no Brasil só percussão não chega a lugar nenhum. Se você não cantar… Você pode ser muito conhecido, ser o maior solista, mas sem voz é muito difícil de circular.
A sonoridades que o senhor tira da cuíca parece uma linguagem única, é como se você tivesse criado um idioma, uma paisagem sonora.
Eu levei quatro anos pra poder chegar nessa linguagem. É um processo que precisa ir se desenvolvendo nota por nota.
Eu vi uma live em que você fazia toda a demonstração da evolução da cuíca, dos diversos materiais utilizados na construção do instrumento
Você sabia que as cuícas antigamente não tinham afinação? Eram umas cuícas de barril com umas tachinhas pregadas no lado. Você cortava o couro do sapato, redondo, costurava, fazia dois furos, pegava o gomo do bambu, furava ele e prendia com arame fininho. Naquela época, os cuiqueiros saíam com jornal no bolso; quando estava perto do desfile, eles acendiam o jornal e esquentavam o couro. Por isso que a cuíca roncava naquela época, no tempo do Boca de Ouro e do Ministrinho da Cuíca. Por isso que eu tive que correr muito atrás pra fazer uma coisa diferente, pra ser acreditado na noite, fazendo um pouco diferente deles
Nesses conjuntos já era possível encontrar um naipe de cuíca ou isso é uma coisa mais da escola de samba?
Já tinha umas cuícas trabalhando em conjunto, como o Zeca da Cuíca, tinha o Germano, que trabalhava com negócio de show, tinha o Boca de Ouro… Na frente deles eu sou novo. Tinha o Neném da Cuíca, que apareceu muito. Como eles trabalhavam com artistas de nome, então eles criaram nome. Eu já venho do sufoco, lá do cabaré, da casa de show, e tinha que sambar, me virar mesmo, fazer coreografia, dançar gafieira.
Recentemente, fui ouvir seu disco Malandro 5 estrelas e fiquei maravilhada com toda a gama de sons, de te ouvir cantar, tocar. O disco vai passeando por diversos ritmos, aí finaliza num funk.
É, eu fiz a cuíca funk. E muito disso porque o palco é um lugar mágico. No palco você vive dez anos, você sai dali realizado, você flutua em paz. Então você tem aquela luz de Deus e os seus colegas, aqueles irmãos todos. Porque ninguém faz nada sozinho. Você fez a música, mas tem ajuda, as composições, as inspirações. A música que eu faço vem assim, do nada. Mas se você falar pra mim “vamos compor”, acabou. Igual uma música que eu fiz, essa daqui é nova:
[Índio canta] “Se um dia o mundo acordar, será o paraíso / se um dia o mundo acordar, será o paraíso / sem maldade, sem traição / sem racismo, sem preconceito / sem maldade, sem traição / sem racismo, sem preconceito / Deus criou todas as cores / se é preto, se é branco, todos nós somos iguais / se é preto, se é branco, todos nós somos iguais / iguais, iguais”.
Essa nota central que você tem, que aí é Sol, vai depender do tamanho da cuíca ou tem uma média, tem um lugar, é um som que você curte?
Não. Se for uma cuíca maior eu já crio uma escala um pouco mais… Aí já é diferente. Fui aprendendo, fui fazendo essa escala, depois saiu o Samba de uma nota só. Esse foi o primeiro solo.
Aí você foi criando o repertório da cuíca.
Até chegar à minha composição da cuíca.
A cuíca tem uma coisa meio livre, a expressão dela junto com outros instrumentos, parece que ela está livre pra entrar em qualquer espacinho que der, ela não tem uma coisa, uma estrutura assim fechada.
Você fica esperando a hora, é aqui, aí você entra. Essa é A cuíca chora, composição minha também:
[Índio canta] “A cuíca chora, sambando miúdo lá vou / a cuíca chora, sambando miúdo lá vou eu / lá vou eu, lá vou eu / lá vou eu, lá vou eu”.
Isso é muito forte, muito potente na sua expressão artística. Porque você é um artista completo. Você dança, canta, compõe, acompanha.
E eu gosto de fazer, você vê que é espontâneo, não tem nada forçado.
É da sua linhagem. E falando em estilo e ginga, como é a sua relação com a capoeira?
Ela me acompanha desde cedo. A capoeira trabalha o seu corpo, os movimentos, a dança, a defesa. A capoeira é a nossa origem na África, na Bahia, é a nossa origem. Não sou um capoeirista, mas gosto muito dela. No berimbau fiz a primeira música. Aprendi um pouquinho, mas não cheguei a ser um capoeira. Dá um pouquinho de trabalho, mas é assim mesmo, afinação de berimbau é assim mesmo.
[Índio pega um berimbau e canta] “Berimbau tocou, meu corpo arrepiou / foi no Largo da Lapa, num jogo de malandro / tem capoeira / eu vou pra jogar”.
Como se deu a formação do Malandro 5 estrelas?
Acredita que nem fui eu que deu o nome Malandro 5 estrelas? Foi a produção que inventou, porque o samba fala daquele negócio todo da Lapa. “Bota Malandro 5 estrelas, vocês já eram”. Falei “Tá bom”. Mas é isso. Na música, você nunca sabe nada, você está sempre descobrindo. O Brasil tem tanto talento, tem cada instrumento de percussão que você nunca ouviu falar. O Luizinho do Jêje esses dias me mostrou um instrumento que eu nunca tinha visto. “Que é isso?”, perguntei. “Isso aqui é espada de Ogum”. Estou sempre aprendendo e tem muita coisa que não sei e não vi, isso aos 72 anos.