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Arquitetura Rural e os novos modelos de vida

por Revista Amarello

Fazenda da Boa Fé

Idealizada como a expressão de uma concepção de vida, a Arquitetura Rural busca soluções para integrar o mundo rural aos desafios atuais.

Leia a conversa com a arquiteta e fundadora Martina Croso Mazzucco

Normalmente, pensamos a arquitetura como um termo associado ao mundo urbano. O que é a Arquitetura Rural e como ela nasceu?

A “arquitetura rural” é uma expressão da minha pessoa, porque eu sempre fui muito ligada à natureza, à biologia, sempre gostei muito de estudar as plantas, os animais, o céu, a água, o solo, e, quando eu comecei a estudar Arquitetura, percebia que ela não ia até esse ponto. Na Arquitetura se fala muito sobre bem-estar social, sobre as dimensões humanas, sobre conforto ambiental da construção, mas a gente não amplia isso para como criar essa ponte de integração entre as pessoas e o ambiente natural, o mundo natural, ou como a arquitetura se integra a isso, porque ela não é – ou não deveria ser – uma cápsula isolada do resto do planeta. Então, como pensamos esse fluxo entre esse o ambiente construído e o meio biológico? E também pensando nas pessoas que vivem nesse espaço, porque acredito que as pessoas constroem seus pensamentos, seus valores, seus sentimentos, muito a partir do ambiente que elas habitam. Como que a gente incentiva isso, para as pessoas se integrarem melhor, ou se verem mais como parte da natureza? Foram essas as minhas primeiras reflexões logo que entrei na Arquitetura: que ambientes estamos criando? Essas reflexões me levaram a elaborar a estrutura teórica da Arquitetura Rural. Eu sempre vivi muito o ambiente natural, seja com a minha família, seja com o esporte. Há dez anos, comecei a frequentar a Serra da Mantiqueira e passei a perceber como a Mantiqueira estava mudando em decorrência da visitação de turistas – e o que são essas casas turísticas que ocupam a paisagem natural de repente, de uma forma um pouco congelada, sem um desenho que reflita a complexidade do ecossistema. Um dos motivos disso é porque temos poucos especialistas focados em desenhar o território rural. A partir dessas reflexões, entendi que queria desenvolver uma arquitetura voltada à propriedade rural como um todo. Fazemos o projeto de reflorestamento, restauramos as nascentes, criamos um sistema agrícola vivo, que respeite o solo, que respeite a biologia, e a arquitetura é um reflexo disso, dessa integração. A arquitetura precisa vibrar essa intenção de integração.

Existe um termo dentro da arquitetura para lidar com o mundo rural? 

Não, não existe. O nome Arquitetura Rural nasceu de uma forma quase ingênua, porque veio de uma arquitetura que tinha vontade de trabalhar com a área rural. Mas eu sinto falta também desse termo, um conceito de “ruralismo” que pudesse dialogar com o urbanismo. Na faculdade, o mais próximo disso era a arquitetura vernacular, que é a arquitetura dos povos, digamos assim. É a arquitetura feita pelas pessoas, sem o auxílio dos arquitetos, o que significa ser basicamente o que vemos no planeta inteiro fora das cidades: arquitetura indígena, arquitetura islâmica, arquitetura dos povos inuítes, etc. Nessa arquitetura, é possível perceber uma integração muito forte entre o objeto da construção e o ambiente no qual ele se encontra. Isso acontece porque quem projeta a edificação é também quem a habita, então está tudo muito afinado nesse sentido. Não é alguém de fora que tem essa ideia e implementa, é a própria pessoa que, a partir da percepção das suas necessidades e da percepção do ambiente, cria isso. A arquitetura vernacular me inspirou muito na construção da Arquitetura Rural.

A Arquitetura Rural nasceu logo após você sair da faculdade?

Não. Eu me formei e trabalhei com projetos de revitalização urbana de espaços subutilizados, e abri uma ONG que se chamava Nomas com outros cinco parceiros. A gente começou com a ideia de se tornar um braço de uma ONG estrangeira que se chama Architecture for Humanity, mas o processo de representar a organização aqui se tornou muito burocrático, então resolvemos desenvolver uma iniciativa própria com a intenção de revitalizar espaços urbanos que estavam subutilizados. Durou dois anos, mas nunca me encontrei muito na cidade. As coisas não faziam sentido de uma forma tão clara. Foi quando entendi que a Arquitetura Rural era o que me motivava, isso em 2016.

Como é o processo de trabalhar em um empresa que converge conhecimentos tão independentes como arquitetura, ciência da terra e economia?

A economia é uma parte fundamental, porque desenha os espaços físicos, desenha os ambientes, sejam eles ambientes naturais ou não. Quando comecei a estudar a fundo a agricultura – e a agricultura no nosso país é uma porção enorme da nossa economia –, eu percebi que é necessário entrar no desenho econômico e nos fundamentos da economia: que tipo de economia, com base em quais princípios, em quais valores, em quais ideias de lucratividade, crescimento e expansão estamos trabalhando. Você precisa estar atento a tudo isso para entender como desenhar e materializar esses sistemas. Além disso, a grande maioria dos nossos clientes são pessoas que querem mudar de estilo de vida, em uma transição para o mundo rural, e quais os caminhos possíveis a partir daí. Então você tem que auxiliar essas pessoas a identificar e criar novos nichos econômicos nesse novo território que elas querem habitar. Em geral, são dois os perfis que nos procuram. Aqueles que estavam no mundo rural mas tinham uma cabeça mais tradicional, uma abordagem mais convencional, de agrotóxicos, monocultura e tal, e que, de repente, se viram diante de uma nova geração – por exemplo, a fazenda foi herdada pelos filhos, e os filhos começaram a trabalhar esse novo olhar, a entender que alguma coisa tinha que mudar. Assim como recebemos clientes urbanos que querem ter um novo estilo de vida e buscam isso no campo. Normalmente, esse segundo grupo tem uma mentalidade radical, que vai da forma como você se alimenta até a organização do seu dia. Por isso, eu sempre falo que esse processo é um desenho de modelo de vida. Você vai revisitar muitas coisas com os clientes – quais são os conhecimentos que você tem hoje e quais conhecimentos você precisa adquirir para manejar essa propriedade de uma forma integrada. 

Em média, quanto tempo leva essa transição?

Vou dar um exemplo. A gente está desenvolvendo o projeto de uma agrofloresta numa propriedade em Itu, que está na família há quarenta anos. Eles estavam até pensando em vender essa fazenda, mas a pandemia os obrigou a passar mais tempo nela. Isso fez com que olhassem para ela de outra forma. Eles ligaram querendo fazer um projeto pontual na casa, mas a conversa evoluiu e passou a ser sobre a propriedade como um todo. Estamos estruturando um sistema agroflorestal que será um novo sistema econômico para a família. Começamos a trabalhar com eles há seis meses, e agora eles estão lá praticamente diariamente construindo, montando a agrofloresta. Eu diria, então, que essa transição pode acontecer em uns seis meses, porque não é apenas um projeto de arquitetura. Uma coisa é idealizar um projeto, outra coisa é implantar. Na implantação de uma propriedade rural, as escalas são muito maiores, então as ações que você toma – a não ser que você seja uma pessoa com um poder aquisitivo enorme, e mesmo assim não é indicado fazer uma transformação tão brusca –, você começa aos pouquinhos. Você começa adaptando um sistema aqui, fazendo uma construção ali, regenerando uma nascente, redesenhando a estrada, restaurando a floresta. São vários projetos dentro de uma propriedade rural. É uma coisa orgânica. Porque o ideal é que você também cresça com o projeto, você também se transforme como pessoa e passe a entender o funcionamento do ecossistema. Não é como uma construção, que você entrega a chave na mão do proprietário e isso está finalizado. 

Depois de apostar no boom urbano dos anos 70, você acha que o Brasil está reencontrando o seu interior, que é a própria essência desse país tão verde e natural?

Eu acho que o planeta está passando por isso, na verdade. Você vê em várias partes do mundo as pessoas voltando para o mundo rural e se interessando por ecologia, alimentação, na própria saúde, nas práticas naturais. É um movimento mundial e no Brasil poderíamos estar vivendo isso mais intensamente, especialmente se considerarmos o potencial que temos para abraçar isso como um estilo de vida, abraçar essa biodiversidade, como caminhos econômicos reais e viáveis, vivendo isso no nosso dia a dia. Mas, sem dúvida, acho que muita coisa mudou, e isso já está acontecendo.

Você sente como se houvesse um preconceito no Brasil com esse mundo rural? Um entendimento equivocado de que ele é menos desenvolvido e sem conhecimento?

Eu vejo que o mundo rural às vezes é tomado por um conceito um pouco marginal e alternativo. Acho que são estereótipos que a gente constrói e que precisam ser revistos. Porque, por exemplo, na nossa abordagem de trabalho, não tem nada de alternativo no sentido “hippie” da palavra, sabe? Trabalhamos de uma forma muito consciente, muito precisa, muito pé no chão. A gente olha para a natureza não somente através da ótica romântica, mas tentando entender o valor biológico dela, para a nossa sobrevivência, para a estabilidade do planeta. Talvez falte desmistificar o lado romântico disso e ver como uma coisa do nosso dia a dia mesmo. Eu vejo que as novas gerações estão chegando com outro olhar, com uma visão de muito mais naturalidade para esse assunto. Falar sobre natureza no dia a dia é normal, biologia não é uma disciplina à parte, é tudo que a gente vive. Então acho que isso deve estar cada vez mais integrado às nossas conversas, aos assuntos que a gente lê e pesquisa e entra em contato, na mídia, não só no setor de ciência do jornal, mas como um assunto que encontramos nas notícias, assim como cinema e arte.

Projeto Cabana OCA

Além da arquitetura vernacular, quais as principais referências para montar a Arquitetura Rural? 

A arquitetura islâmica tradicional, com sua estética detalhista e diversidade de materiais, sempre me chamou a atenção. Em seguida, me deparei com a arquitetura islâmica rural e passei a estudar muito as estruturas feitas de terra. Como trazer conforto ambiental para construções no meio do deserto? Como captar e utilizar a água em ambientes extremos? Passei a estudar também a arquitetura indígena, que foi referência para um dos nossos projetos, a Cabana OCA; e a arquitetura dos inuítes, que vivem no ártico, seus iglus e como eles trabalham a questão térmica dentro de construções de gelo. Além dessas referências, a permacultura é uma base teórica fortíssima dentro do nosso trabalho, porque ela faz a integração das várias disciplinas no desenho do território e na construção de modelos de vida. Estudei também ecologia – ecologia pura, processos biológicos e processos hídricos. A verdade é que combinei vários conhecimentos que se prestam a entender como as pessoas de diferentes partes do mundo, fora das cidades, fora do ambiente pós-industrial, vivem, produzem seus alimentos, se organizam socialmente e constroem suas casas. 

Quais são as principais tecnologias utilizadas nos projetos? 

Do ponto de vista do planejamento, trabalhamos muito com desenhos de sistemas hídricos e tecnologias biológicas. Pensamos como a integração da vegetação com o relevo e com a água pode produzir um ambiente de qualidade; como o consórcio entre plantas vai contribuir no aumento e na potencialização do sistema agrícola, por exemplo – isso é uma tecnologia, no sentido de que é um entendimento de como esses componentes naturais se integram e potencializam esses espaços. Do ponto de vista construtivo, a gente procura muito trabalhar com tecnologias de construção de terra ou madeira. E no aspecto mais tradicional, utilizamos o ArchiCAD, trabalhando com o planejamento em 3D da propriedade. Fazemos muitos desenhos a mão, muitos registros fotográficos, muita análise de dados de satélite e estudos de referências bibliográficas.

No contraponto dessa ideia de tecnologia, há algum saber ancestral envolvido e praticado?

Muitos, pois fui aprendendo no dia a dia, estudando e conversando com as pessoas. Eu acho que você nunca aprende tudo na sua área de atuação. Pelo menos eu percebi isso trabalhando com arquitetura rural, que a gente é muito interdisciplinar e multidisciplinar. Buscamos constantemente referências da física, biologia, ciências agrárias, economia, ciências humanas. Não poderia dizer que há um saber que fez toda a diferença. Como sempre dizemos ao apresentar a Arquitetura Rural, ela é um design de sistemas integrados. São vários sistemas pensados de forma unificada e interconectada. 

Entre os projetos, qual foi o mais difícil de ser implantado?

Certamente, o primeiro projeto foi um dos mais desafiadores. Eu estava num momento de tentar assimilar todo o processo. Apesar de saber a direção a seguir, ainda sentia uma insegurança sobre todas as ferramentas que precisaria. Além, é claro, de entender quais outros profissionais eu precisaria ter comigo para concretizar a visão de desenho integrado de uma propriedade. O projeto era o de uma propriedade rural de três hectares em São Bento do Sapucaí. Para um ambiente rural, é uma escala pequena, porém significa a transição de uma família que queria deixar a cidade para viver no campo. Quando começamos a desenhar o sistema, a área era um descampado com 30 mil metros só de passagem. Eu olhei para esse lugar e pensei, “nossa, como que a gente vai restaurar esse sistema? Como vamos criar o que eles querem – uma casa e uma pousada? Quais serão os valores dessa pousada? Qual será a experiência desse espaço?” A ideia foi construir um sistema agrícola que abastecesse a casa e a pousada, assim como uma área de reflorestamento que evoluísse para uma floresta natural. Nela, eles teriam uma área de manejo sustentável, em que viriam a utilizar a madeira de alguma forma, economicamente, no futuro. Planejamos o sistema hídrico, como a água seria captada, utilizada e reabsorvida através do sistema de esgoto. Abordamos a propriedade tanto na parte conceitual quanto na materialização da obra. No momento, estamos desenvolvendo um sistema agroflorestal para ser implantado numa região que vem passando por mudanças climáticas muito fortes, no interior de São Paulo. Atualmente, ele sofre com períodos de estiagem de seis meses e clima muito seco. O desafio desse sistema agrícola é como responder tanto às mudanças climáticas de hoje quanto às que virão. Ali, estamos trabalhando na modelagem da terra para captar a água da chuva no terreno, e a utilização de espécies que estejam adaptadas a cenários extremos. Em paralelo, pensamos no desenho social – quem serão as pessoas que vão cuidar dessa propriedade, com qual frequência e quais conhecimentos.

Onde se localiza a maioria dos projetos?

Temos um projeto no Tocantins, dois na Bahia e muitos aqui no Sudeste. Temos também um em Brasília, que foi fruto de um concurso. 

Concurso Ceilândia

Em um país com grandes diferenças econômicas, sociais e de pensamento como o Brasil, você acha que essa concepção de integração homem-natureza ainda é vista com preconceito ou desconfiança?

É uma pergunta difícil, mas eu acho que, talvez aqui, no Sudeste, tenhamos uma abertura maior para essa ideia. É possível que em outras regiões isso seja conversado mais como uma prática ancestral, ligado, quem sabe, ao fazer dos antepassados. Sinto que o Sudeste aposta nessa informação de forma mais midiática, e é provável que a concentração de poder aquisitivo ajude a levar a ideia adiante, com pessoas adquirindo propriedades e criando esses empreendimentos nos últimos anos. 

A Arquitetura Rural já pensou em operar fora do país? 

Sim, algumas vezes. Sempre comentamos um dado interessante, que é o de que as cidades e centros urbanos ocupam 3% do planeta. É um dado chocante, porque, no nosso mapa mental, as cidades ocupariam tudo, mas, no mundo real, as áreas não urbanizadas são a vasta maioria do território terrestre. Nós entendemos ser um desafio fundamental a restauração desses espaços, porque são mais de 2 bilhões de hectares degradados no mundo, algo maior que a América do Sul. E quando me refiro a degradados, quero dizer territórios em processo de desertificação, com quebras do ciclo hídrico, quebra do ciclo dos nutrientes, territórios em que as pessoas precisam migrar para sobreviver. Por ser uma profissão essencialmente multidisciplinar, a arquitetura precisa assumir para si a responsabilidade de participar de projetos que promovam uma melhora nos ambientes e na qualidade de vida das pessoas. Eu vejo a Arquitetura Rural atuando na restauração de territórios e na construção de modelos de vida mais saudáveis e mais compartilhados, colaborando um pouco para a harmonia e a felicidade de todos. 

Além dos projetos que realiza, a Arquitetura Rural também ministra cursos. Como eles funcionam?

Começamos a dar cursos em 2017, em parceria com o Instituto Terra. O Instituto Terra é a ONG do Sebastião Salgado, em Aimorés, que trabalha na revitalização e restauração da antiga fazenda da família. O instituto tem duas frentes. A produção de mudas para a restauração de nascentes na região — e eles têm um programa ambiental maravilhoso de conscientização da atuação nas propriedades da região — e uma frente educativa, que conta com um programa chamado NERE (Núcleo de Estudos em Restauração Ecossistêmica). Nessa frente, trabalham com aproximadamente trinta adolescentes durante um ano. É um programa em que eles ficam praticamente num internato, morando no Instituto Terra, e aprendem sobre diversos assuntos, como ecologia, agricultura, planejamento. Fazemos parte oferecendo um módulo de ensino sobre planejamento. A partir disso, começamos a oferecer cursos aqui em São Paulo também, na Escola de Botânica, e em algumas outras instituições parceiras. Normalmente, são workshops ou cursos de dois dias. No ano passado, realizamos um curso online chamado Introdução ao Planejamento de Propriedades Rurais. Ele é voltado para o público geral, interessado em aprender sobre o tema. Esse ano vamos lançar a segunda edição.


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