#32TravessiaCulturaSociedade

Aurora

por Helena Cunha Di Ciero

E, de mãos dadas, formaram uma corrente tão poderosa,
tão compacta, que o trânsito teve mesmo de parar
e ficou completamente imobilizado.

Não vou ceder agora à tentação de afirmar que
assisti à materialização de um milagre,
afinal é coisa que deve estar sempre a acontecer,
em algum lugar, ao fim da manhã ou da tarde,
logo depois das aulas, dois adolescentes dão as mãos,
atravessam a rua, bloqueiam a circulação rodoviária de uma cidade.

Mas pensa nisso por um segundo, pensa na força dessa corrente.

Luís Filipe Parrado

Outro dia mesmo era eu sentada no chão do aeroporto jogando truco, pensei, quando encontrei um bando de adolescentes sentados numa típica viagem escolar, nem aí para a hora do Brasil, na calçada, com seus telefones celulares tocando música sertaneja. Sorrindo com leveza, zombando uns dos outros, coloridos pelo viço, pelas tatuagens. “Ei, espere, já fui uma de vocês” – tive vontade de dizer para aquela plateia nada interessada naquela mãe de duas crianças que faziam birra na calçada, exaustas pelas horas de voo. Essa sou eu, constatei.

Foi assim, de repente, que cresci e virei gente grande. Ali no espelho, eu olhei e deixei de ver a adolescente que um dia eu fui. Na verdade, hoje até estranho essa moça que eu vejo nas fotos tão cheia de sonhos, que achava que a vida com ela seria mais doce, menos dura, mais generosa. Tinha algo em mim que achava que a adolescente duraria para sempre, tal qual metal precioso. E tentei mumificar esse ser que um dia eu fui por um tempo, confesso com certo embaraço. Até que, num dado momento, foi preciso fazer uma despedida e assumir que a adulta agora me possuía mais do que nunca. Não foi de propósito; a aurora da minha vida passou e foi embora sem se despedir. Com o final dessa primavera, começou a vida de adulto, sem pedir permissão.

É assim que se dá o crescimento; a gente se adapta finalmente a uma situação e pimba: ela acaba. E as rugas mapeiam esse anúncio sem dó nem piedade. O tempo se impõe, simplesmente.

Fácil verbalizar isso após os trinta, com quilômetros rodados. Mas há uma tristeza nesse discurso, um luto, uma dor e uma perda. Pois bem, para um adolescente, a mesma sensação se presentifica. O momento é outro, mas é também marcado por uma transformação. Contudo, falta repertório, palavras, sobram angústias e sensações.

A adolescência é a passagem do mundo infantil para o adulto; uma ponte, uma travessia. Tudo isso envolve uma adaptação, e toda adaptação é precedida por uma crise. Aquele corpo de criança se vê invadido por pelos, espinhas, partes que crescem desgovernadamente, uma voz que desafina, hormônios que não existiam. Esses novos habitantes daquele espaço tão gracioso do corpo infantil não chegam de forma harmônica.

Esse processo é marcado por uma sensação de estranhamento, de não pertencimento. Já diziam os Titãs: “Eu não caibo mais na roupa que eu cabia, eu não encho mais a casa de alegria, mas quando me olhei achei tão estranho, a minha barba estava desse tamanho”.

Há, ao mesmo tempo, uma excitação com a conquista de mais autonomia e uma tristeza pelas cobranças do mundo da maturidade. Além da dor da perda do lugar privilegiado da criança.

Os pais, que antes eram um lugar de proteção, tornam-se figuras persecutórias por tentarem colocar limites nas realizações de desejos do jovem. O que lembra a estrofe de outra canção: “Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo. São crianças como você, o que você vai ser quando você crescer”.

Nesse período da vida, há um luto das figuras parentais idealizadas. Logo, o lugar de herói fica desocupado e inicia-se uma busca por ídolos e novos modelos de identificação. O jovem está desesperado em busca de formar essa nova identidade.

É como se ele se tornasse estrangeiro num mundo que sempre lhe foi familiar. Por isso, as amizades nessa fase são tão importantes; constroem um muro para proteger aquele Ego frágil em transformação.

Costumo dizer que é como uma Ferrari com motor de Brasília amarela. Lataria linda, mas o interior precisa de cuidados. O corpo de adulto e a mente infantil são parte de um mesmo indivíduo. E essa mente não é capaz de conter aquele novo corpo em desenvolvimento.

De acordo com o psicanalista Marcelo Viñar, a juventude não pode ser definida como realidade cronológica, e sim como um tempo de mutação que marca um antes e um depois. Isso pois a essência da adolescência é o ímpeto, o movimento. Como se captura o vento ou o fogo quando sua marca é a instabilidade?

Cuido de adolescentes há alguns anos no consultório e me sinto bastante privilegiada por receber esses pacientes no momento em que a dança da vida se apresenta para eles. Recebo-os como quem recebe botões de rosa fechados, cheios de esperança, ao mesmo tempo frágeis e cheios de espinhos. E procuro dar-lhes algum contorno. Não é um trabalho fácil, ajudá-los nessa transição. Explicar-lhes que a vida é mesmo contraditória. Que os amores acabam. Falar-lhes sobre leis num país onde elas são constantemente desrespeitadas. Explicar-lhes sobre autoimagem numa cultura de Photoshop. Ajudá-los a compreender que esse corpo que pulsa não pode fazer exatamente aquilo que deseja a despeito de sua intensidade. É que na crise da adolescência, há uma sexualidade aflorando descontroladamente, e torna-se difícil lidar com seus impulsos.

Contudo, acredito que um jovem, quando acolhido e compreendido nesse transbordamento emocional, nos sinaliza um futuro mais colorido e cheio de esperança.

Trabalhar com esses pacientes que vêm com a marca da pressa, da urgência, do efêmero do nosso tempo atual pode ser rejuvenescedor. Convidá-los a um momento de pausa e reflexão é quase um ato revolucionário. Perceber também o quanto essa moçada se alimenta de relações qualitativas, basta haver uma intenção, me faz acreditar num horizonte mais azul. Sim, eles assistem lixo na internet, mas também são capazes de se encantar com um belo poema, um bom filme, quando convidados. Basta estender-lhes a mão nessa passagem.

Devemos ser cuidadosos, como adultos, para continuarmos investindo nos adolescentes, e não com um olhar invejoso do jovem que deixamos de ser. É importante dar credibilidade aos sentimentos dos jovens, tentar compreender suas dores e angústias. Oferecer um amparo nesse momento de tempestade. Essa é a aposta esperançosa.

O aumento dos suicídios na adolescência nos denuncia um vazio. Que vazio é esse? Seria o vazio do nosso olhar? Como adultos? Será que estamos preocupados com o legado que estamos deixando para os jovens, em acolher esses seres em transformação?

Ou será que estamos tão preocupados em perpetuar nossa juventude que nos esquecemos de cuidar de nossos jovens? Será que, ao nos conformarmos com nosso lugar de envelhecimento, não podemos lhes oferecer a proteção que necessitam?

Pensa na força dessa corrente.


Texto originalmente publicado na edição Travessia

Assine e receba a revista Amarello em casa