Dizem que conviver com as avós é uma sofisticação evolutiva que poucos animais desenvolveram — humanos, alguns macacos e baleias, por exemplo. Suspeito que que isso se dá pelo enriquecimento do nosso repertório emocional e afetivo provocado pela convivência com elas.
E já que é para falar sobre avós, é preciso falar delas próprias, porque avó tem que ser específica e real. O afeto vem do particular, e não do geral. No meu caso, a convivência com minhas duas avós me trouxeram a relação com a literatura, as artes visuais e a fotografia e alimentaram minhas fantasias com viagens. Também tive estímulos de outras partes, é claro, mas quando é de vó, a coisa tem um peso diferente. É como se a relação com elas fosse preparando a gente para a grande ausência que a partida delas vai deixar, e tudo que elas nos dão vira insumo para uma saudade que vai ser a principal relação que a gente vai ter com elas em grande parte da nossa vida.
Como eu já gosto de navegar na saudade e investigar a relação com nossos sentimentos através da arte, aproveitei a oportunidade para fazer um passeio com a ajuda de inteligência artificial pela minha relação com elas, passando pelas influências artísticas e os vestígios que elas deixaram no meu imaginário.
Vó Elba
Minha avó Elba era fã dos pintores pré-rafaelitas e vivia me dizendo pra visitar a Tate Gallery quando fui morar em Londres. Quando ela faleceu, eu ainda estava morando lá e não pude ir ao seu velório, por isso resolvi finalmente visitar os quadros de que ela tanto gostava e me conectar com a sua partida.
Uma gaúcha da fronteira, que além do sotaque, tinha memorabilias gaúchas, como uns quadros do pintor Glauco Rodrigues — com gaúchos cavalgando e a paisagem dos pampas — que permearam minha infância, junto de minha irmã, em sua casa. Os quadros também já se foram e deixam saudades, mas, curiosamente, contemplar essa rememoração artificial dele com a gaúcha e seus netos no Rio consegue dar conta do vazio da ausência original.
Elba tinha uma relação de amor e ódio com o videocassete, pelas maravilhas que ele podia fazer e pela incapacidade dela de ajustar o relógio ou programá-lo para fazer qualquer coisa — o que obviamente ficava a cargo do neto tecnológico.
Criada no sul do Brasil, sua relação com carne e bois era muito peculiar, e ela ficava particularmente emocionada com as touradas que passavam à tarde nos canais de TV a cabo.
Ela falava muito sobre livros com a gente, estimulando a leitura e comentando sobre seus favoritos, como Neruda ou Proust. Deste, eu sempre ouvia a história da famosa madeleine que ele tinha comido e que, num jorro epifânico, deu origem a todo seu livro monumental. A madeleine era uma espécie de portal do Proust para a infância, o que, no meu caso, com certeza seria o pão de queijo, remetendo aos que eu comia na casa dela — a única comida capaz de fazer brotar memórias e um fluxo de lembranças suficiente para preencher três mil páginas.
Seus slides de viagem eram fascinantes e alimentaram muito minha curiosidade de morar fora do Brasil e conhecer outras culturas.
Acredito que obras que nos marcam profundamente oferecem pistas importantíssimas para desvendar quem somos de verdade. No caso dela, tinha um poema do poeta chileno Pablo Neruda que sempre a deixava muito emocionada: La mamadre. Ela adorava recitá-lo com seu espanhol porteño: “La mamadre viene por ahí, / con zuecos de madera (…)”.
Vó Meri
Minha avó Meri era uma fanática por fotografia, que sempre me estimulou e me deu minha primeira câmera digital. Um de seus muito bordões era: “Se você não fotografou, você não esteve lá!”. Minhas fotos como Cartiê Bressão vêm dessa simples tentativa de registrar os momentos e sentimentos de que eu quero me lembrar.
Além de estimular a fotografia, ela também incentivava o aprendizado de línguas e a autossuficiência. Um exemplo clássico era a coleção de fitas cassete com aulas de francês que ela tinha e adorava compartilhar.
Na minha cabeça, tudo em sua casa tinha decorações náuticas, uma grande paixão dela e do meu avô, que acho que contribuíram para este meu estado permanente de viagem. Ela era cheia de truques para viagens, como sua máxima de só ficar duas semanas fora de casa para que a volta não fosse muito dolorosa e o segredo que aproveitou de Principe Charles: ele nunca sabia quanto tempo podia ficar preso num cerimonial, então, assim como ele, quando tiver a oportunidade de ir ao banheiro, vá!
Sua gigantesca coleção de corujas era mitológica e, em retrospecto, sem dúvida já era um bom indício de sua excentricidade — característica extremamente inspiradora para a conexão com minha autoralidade e individualidade artística.
Definitivamente, Meri não era adepta do minimalismo na hora de se vestir, e sua intensidade nas estampas às vezes lhe rendiam o não muito lisonjeiro apelido de “dragão da independência” pela patrulha familiar. Sua capacidade de ignorar esses ataques à sua liberdade de expressão, porém, garantiam que ela sempre estivesse pronta para brilhar.