Amar e contar com o outro: aprendendo a construir vínculos
Num dia você é jovem, produtivo, tem sonhos e projetos de vida na pauta de sua agenda semanal. No outro, descobre, da maneira mais estranha possível, que seus assuntos versam sobre a morte de familiares queridos e pessoas públicas; adoecimentos e tratamentos de saúde; medicações de última tecnologia para tratamentos de saúde e suplementação para a manutenção de um corpo saudável — em um esforço constante na tentativa de mantê-lo afastado dos adoecimentos e das dores do viver neste corpo.
O tempo tem passado de maneira veloz, e não estamos conseguindo elaborar as mudanças integradas que acontecem no corpo, na mente e no espírito. As dimensões do tempo vivido têm sido borradas por um passado que se tenta resgatar de modo compulsivo, com a função de cumprir um prescritivo de vida jovem e produtiva, desconsiderando as passagens do tempo, inevitáveis a todo corpo humano. Por mais que a biotecnologia se esforce e as condições econômicas favoreçam ao ser humano avançar no envelhecimento ativo e saudável, uma verdade é nua: se viver e viver de fato é muito bom, o preço a se viver é o envelhe-ser deste templo chamado corpo e cuja humanidade parece ter caído no esquecimento moderno. O fato é que a conta não fecha; estamos desumanizando nossa condição mais humana: a vulnerabilidade, aquilo que não estamos contando, o inesperado.
Vivemos no mundo da modernidade líquida, como apontou Zygmunt Bauman, sociólogo idealizador da obra Amor líquido e de tantas outras que versam sobre o efeito do capitalismo no corpo e no tempo. Corpo e tempo que, segundo a sua interpretação, são transformados em esferas do ser humano voltadas ao consumo — especialmente o consumo que nos entrega a satisfação do bem-estar imediato, alcançado por meio do acesso fácil a serviços, pessoas e bens de consumo. Na busca por maximizar nossa satisfação instantânea, a dopamina gerada a cada like de aprovação externa nas redes sociais se tornou o maior reforçador da existência humana e de sua visibilidade social.
Em tempos idos, em que a racionalidade predominava como o paradigma de um plano diretor da existência, a máxima ideológica era “penso, logo existo”. Essa premissa migrou um pouco para “posto, logo existo” e gerou uma compulsão pela criação de perfis nas redes sociais como validação de uma existência ativa e interessante, reconhecida por meio de produção de conteúdos e imagens que emocionam e conectam pessoas por meio do afeto gerado pela identificação. Nasce, então, uma rede social virtual que predomina em todas as classes sociais, com uma diversidade humana conectada por nichos de interesse, configurando-se uma rede de apoio e criando-se vínculos baseados em laços profissionais, de amizade e de relacionamentos íntimos.
Não seria problema existir nas redes sociais; seria até uma solução para os viventes apressados, já que estaríamos encurtando fronteiras entre nossos interesses, singularizando aquilo que nos diz respeito e trazendo para perto nossos vínculos distantes (inclusive de forma geográfica), eliminando as distâncias a serem percorridas e facilitando as conexões humanas. A questão que precisamos tratar é outra, tão importante quanto silenciada em nossa sociedade: o quanto estamos mais solitários, individualistas e fechados para relacionamentos que convocam a força do encontro presencial. Isso foi naturalizado e potencializado com a pandemia de covid-19, que fez com que se aprimorassem inúmeros aplicativos de relacionamento como uma maneira de resolver o problema do isolamento social imposto pela crise sanitária.
Até aqui, a questão do envelhe-ser não seria tão inflamada, pois é possível maquiar selfies, criar perfis hedonistas e até personagens de vida interessante, que pareçam uma ótima companhia. Porém, o desencontro humano e a falta de permanência dos vínculos também se anunciam como um gerador de angústia cada vez mais recorrente nos consultórios médicos e psicológicos. Estamos vivendo uma era do hiperespetáculo, conceito descrito pelos filósofos Gilles Lipovetsky e Jean Serroy em A estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista, em que os autores afirmam que o novo regime de produção traz críticas ao mau gosto e à feiura da produção industrial. Nesse âmbito, aparecem ainda diversas correntes ambicionando a melhoria da qualidade estética dos objetos fabricados em série, reconciliando a criação com padronização, beleza e indústria, com arte e técnica modernas.
Embelezar, seduzir, inovar e distrair são as novas ideias do bronze do capitalismo artista. Cria-se uma nova geração treinada no consumo para a arte, para o belo, para o prazer, para o entretenimento full time, para a cultura e para uma existência baseada no melhor aproveitamento do tempo. E o que esse cenário tem a ver com a nossa passagem do tempo vivido? Tem a ver que a vida sonhada com base num sucesso padronizado e na realização humana não comporta uma vida de fato humana, que contém diversas tonalidades afetivas: frustrações, dores, lutos, perdas — de saúde, financeiras, afetivas, sociais. Uma vida que abriga todas as mazelas humanas de descobrir-se vivo em um tempo em que não se pode ser frágil, que abriga inclusive a parte mais vulnerável do tempo: a velhice. Invisível, ela se instala, mostrando a face cinza da vida: aquela que não produz, não seduz e ainda causa dor, afinal, é doloroso pensar na passagem do tempo e em suas possíveis facticidades já presumidas e primas da dependência, como ter que contar com quem nos dê suporte e tome decisões por nós em caso de incapacidade; com a possibilidade de ter que ser tutelado — mesmo que essa tutela se baseie em vínculos afetivos. Mas cadê as pessoas que ficam disponíveis ao cuidado daqueles que não são mais moeda de troca?
A questão maior é que nós que vivemos a crise da meia-idade — e digo “nós” porque me encontro nela —, geralmente com idade entre 40 e 55 anos, estamos no auge da potência produtiva na realização de vínculos familiares, fraternos, filiais e conjugais e construímos uma boa rede de relacionamentos, compatíveis com nossos interesses, que se tornaram vínculos sólidos e que nos transmitem a segurança de que seremos cuidados. Esse cuidado geralmente se dá no grupo familiar sem maiores problemas, sendo pré-estabelecido organicamente pela sucessão familiar, afinal, os membros desse núcleo já preveem que a família seja responsável pelos cuidados com os mais velhos até a morte.
A questão que precisamos tratar, dentro do contexto do tempo hipermoderno, com todas as mudanças nos valores, nos modos de existir e na forma como se dão as relações sociais, é que os relacionamentos passaram do estado sólido para o pastoso, líquido ou gasoso. Adquirir o status de relacionamento já é algo em falta, quando a pauta é a formação de vínculos, inclusive entre gerações mais jovens, entre 20 e 40 anos — precursores da meia-idade, em que os valores são pautados pela experiência de vida e por uma maior intensidade e diversidade possível no que se refere aos momentos vividos. É uma lógica que torna o projeto de vida algo planejado quase arquitetonicamente para não se perder tempo, pois este é um recurso escasso e que não se renova.
Crises da meia-idade nos despertam para a finitude, nos fazem atentar para o fato de que não se volta no tempo. Algumas pessoas começam, nesse momento, com os cuidados estéticos e o controle da saúde, de forma a se ter um corpo que drible as marcas do envelhecer. Isso resulta, sim, em algum ganho estético, fazendo parecer que ser mais jovem mantém portas abertas, afinal, ser jovem é a marca de nosso tempo. Alguns vão cuidar de um novo projeto, abandonam as carteiras assinadas e se lançam em novos desafios profissionais. Para a síndrome do ninho vazio (quando os filhos crescem ou quando se constata que não os teve), há uma oferta de atividades que o mercado do entretenimento oferece ao tédio sentido por quem se aproxima dessa fase. Para o grupo de divorciados, há uma gama de pessoas no mercado da repescagem, com suas notórias histórias, com uma bagagem de experiências e traumas sendo curados na esperança de se voltar ao equilíbrio mínimo.
Mas até agora temos toda a ocupação vinda de fora, do material, do mundo do consumo. E o que farei com as minhas faltas de dentro? Quem vai preencher minha fome de presença, de escuta, de sentir junto comigo a vida? Quem vai estar comigo até o fim da vida adulta? Sim, precisamos falar sobre como um dia vamos morrer e nossa notória identidade cairá em esquecimento em até dois anos — isso se lembrarem de registrar que morremos, pois envelhecer traz consigo a invisibilidade de nossa passagem na terra. Triste, cru, indigesto e mal temperado, esse é o tom do desespero, da solidão que envolve essa época da vida. O etarismo é a marca hermenêutica que escancara a dor do envelhecer, fazendo cair num vazio toda a experiência viva que porta a passagem do tempo e que é negada em nossa contemporaneidade eternamente desejosa por fazer morada na adolescência. Porque, afinal, fazer família, ampliar custos e diminuir tempo ao ter filhos, nossos dependentes, em tempos de singularidade máxima, é para loucos.
Essa nudez humana e demasiada que apresento não se cura pelo material visível ofertado, pelas viagens que podemos eventualmente realizar e pela coleção de memórias. A grande memória da vida são os encontros humanos, inclusive aqueles malsucedidos, porque assim não romantizamos os desencontros e os colocamos como parte da totalidade do existir. Encontro é linguagem afetiva, presença e memória. Mas estes, tão preciosos, precisam ser construídos, em nossa época, com a urgência de quem trata o desmatamento dos vínculos pela modernidade e a escassez de tempo dedicado ao outro. Só assim podemos nos confrontar com a grande questão humana: quem sou eu a partir do encontro com o outro? Afinal, somente na construção bem cimentada do afeto é que será possível mantermos uma rede de apoio fraterna de adultos órfãos de vínculos sanguíneos, para sermos adotados “ombro a ombro” pelos amigos, companheiros de jornada que cativamos ao longo da vida. Estão inclusos aqui os amigos de infância, para quem tem a sorte de tê-los, pois eles são portadores de nosso maior bem: a identidade e a essência de uma época não corrompida pelas ideologias modernas do viver. Eles portam nossas risadas e vergonhas mais genuínas, e estas não estão em negociação para quem guardou a sete chaves os segredos da juventude.
Se é inevitável que o resultado, no grand finale, seja que tudo passa, sobrevive a isso a nossa capacidade inesgotável de amar. Se soubermos a chave para mantê-la na maturidade, teremos amor de sobra para historiar junto aos nossos companheiros de envelhe-ser. Teremos um celeiro de memórias sempre prontas para serem recordadas: do tempo que passamos juntos, dos choros, dos erros, das perdas. O mais incrível de minha rede de apoio é a diversidade: colegas de trabalho, amigos, amores e filhos. O importante, parafraseando Roberto Carlos, é que emoções eu vivi, e sem todos essas pessoas eu não teria o que contar. Vale muito a pena se vincular!