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Apagamento e resgate histórico: o Largo do Rosário

Não é raridade que pedaços de história, territórios que por quaisquer razões não foram vistos como áreas a serem preservadas, cedam às intempéries do tempo e das novas demandas, caindo lamentavelmente no esquecimento. No caso do Largo do Rosário — cuja extensão, hoje em dia, forma em conjunto com algumas ruas a avenida Álvares Cabral, em Belo Horizonte —, esse soterramento foi literal: com a construção da capital de Minas Gerais, ocorrida no final do ano 1897, o Cemitério dos Homens Pretos e a Capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, pontos que por quase um centenário se fizeram tão presentes à comunidade negra da região, foram demolidos. Foi somente em 2022 que o local ganhou registro definitivo de patrimônio cultural imaterial.

Reprodução do que foi o Largo do Rosário, em Belo Horizonte | Foto: Paisagens Pitorescas/ IFMG/ Campus Ouro Preto

A obra da Irmandade dos Homens Pretos era referência para a população negra do antigo Curral del-Rey, tendo um fortíssimo impacto sociocultural abrigando tanto o cemitério, de 1811, quanto a capela, de 1819. Além de literal, o soterramento desses pedaços carrega um quê de orquestramento, já que a História brasileira parece muitas vezes ter uma memória bastante pior para lembrar e celebrar os capítulos de sua identidade negra. O descaso demonstrado ao cemitério e à capela veio não só com a demolição de mais tarde, mas de um desleixo registral infelizmente típico quando a matéria a ser documentada não tratava da elite. Ao fim, o Largo não foi devidamente registrado nem substituído e uma nova capela foi inaugurada dois meses antes da fundação oficial de Belo Horizonte, sem a participação da Irmandade dos Homens Pretos. 

Como se a indiferença aos símbolos ali erigidos não fosse suficiente, o que chega a impressionar é o desprezo também pelas 60 sepulturas que faziam parte do cemitério, deixadas para trás de forma categórica.

Projeção da Igreja do Rosário | Foto: Paisagens Pitorescas/ IFMG/ Campus Ouro Preto

Importante aqui abrir um parêntesis para dar um panorama geral sobre a Irmandade dos Homens Pretos — atualmente conhecida como Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos —, para que se tenha uma ideia da importância que tinham para Minas Gerais os dois símbolos negros que finalmente vieram à tona. As irmandades foram instituições numerosas no período colonial brasileiro, espalhando-se de norte a sul do país, reafirmando a presença significativa das pessoas negras e acolhendo a religiosidade de quem, na época da escravidão, era impedido de frequentar as mesmas igrejas dos seus senhores. É uma confraria que permite, até hoje, a livre manifestação da sacro religiosidade própria, com influências ritualísticas de todos os cantos do mundo. Graças a ela, homens e mulheres negras que vieram da África, por exemplo, chegaram diante de um cenário onde conseguiram construir suas próprias irmandades. É por representar um direito recuperado, reivindicado às custas de muita resistência, que reconhecimentos como este do Largo do Rosário são, apesar de atrasados, tão fundamentais — lembrando do passado, constrói-se um futuro mais abrangente.  

A luta agora é pela reparação. Quem encabeça o movimento é o padre Mauro Luiz da Silva, criador e curador do Muquifu (Museu dos Quilombos e Favelas Urbanas). Até pouco tempo atrás, a memória do Largo do Rosário estava restrita aos documentos preservados pelo Arquivo Público de Belo Horizonte e o Museu Histórico Abílio Barreto. O registro do Largo como Patrimônio Imaterial, confirmado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte, foi uma grande vitória e se apresenta como uma tentativa de reparar o apagamento da Irmandade dos Irmãos Pretos e da comunidade negra na história da cidade e do Brasil.

A placa que reafirma a importância do local pode parecer pouco diante do esforço sistemático de expulsar as irmandades negras e criar barreiras cada vez maiores entre a cidade e a periferia, mas representa pelo menos o começo de uma mentalidade que demonstra uma preocupação com a ancestralidade negra.

Antes tarde do que nunca.