Juliette Binoche no filme “A Liberdade é Azul” (1993), de Krzysztof Kieslowski.
CulturaSociedade

O que é a liberdade na era das redes socias?

Há muito se pensa sobre a liberdade. É daquelas discussões que, independentemente da época, sempre será relevante. Do taoísta Chuang-Tzu ao filósofo grego Epiteto, de Jean-Jacques Rousseau a Immanuel Kant, de Simone de Beauvoir a Jean-Paul Sartre, de (por que não?) Diana Ross a George Michael. O tema nunca há de se esgotar. Isso porque, apesar de pontos atemporais de convergência, é essencialmente debatido de acordo com os ditames da sociedade em vigência. As noções de liberdade de séculos atrás, é evidente, eram distintas das noções de liberdade que temos agora, diluídas no suco da modernidade. E, na medida em que o mundo dá passos maiores que a própria perna e as tecnologias vão nos desafiando cada vez mais enquanto um corpo social de fato funcional, ainda mais lenha foi jogada na fogueira nas últimas décadas. 

Nos EUA, Elon Musk segue na sua empreitada quixotesca de ser a versão chinfrim de Charles Foster Kane à frente do Twitter. Enquanto isso, em terra brasilis, o presidente Lula prepara um pacote para regular as mídias sociais. A opinião pública, por sua vez, dá pitacos aqui e acolá, como a cientista Barbara Walter, que acredita que a regulamentação é fundamental para conter guerras, e a celebridade cibernética, Felipe Neto, reverbera esse coro, muito embora o seu sucesso venha da internet e se alimenta via redes sociais. Não surpreende: a celeuma está liberada.

Foto: Reprodução/Redes Sociais/Bloco dos social-democratas no Parlamento Europeu, onde disse “Vamos ter que regulamentar as redes sociais”.

Dentre as questões que crepitam na atualidade com força redobrada, podemos destacar a que pergunta: em que nível se deve regulamentar as redes sociais? E, além dessa, evidencia-se também aquela que pondera: a que ponto isso significa romper com a ideia de liberdade de expressão e se aproximar do cerceamento?

Antes de tudo, falemos sobre a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) e suas equivalências estrangeiras. A lei brasileira entrou em vigor em setembro de 2020 com o objetivo de regulamentar o uso, a proteção e a transferência de dados pessoais. Estabelece, assim, regras claras e específicas no território nacional para o tratamento de data por empresas e organizações. Com a LGPD, em teoria, tem-se mais controle sobre nossos dados pessoais, podendo ela, inclusive, exigir a exclusão, correção ou atualização deles. Ademais, ainda representa um impacto significativo no mundo empresarial, pois exige que as empresas implementem medidas de segurança adequadas para proteger os dados que coletam e tratam, bem como estabelece sanções e penalidades significativas para o descumprimento da lei, incluindo multas e perda de reputação. Vale apontar que, pelo caráter transacional da internet, a lei deve tentar acompanhar o ritmo, sendo com frequência revista. É razoável, então, pensar que, sem ela, as coisas iriam de mal a pior.

Obviamente, existem várias leis similares à LGPD ao redor do mundo. Desde a implementação do General Data Protection Regulation (GDPR) na União Europeia, em maio de 2018, outras regiões e países também aprovaram leis de proteção de dados, como o California Consumer Privacy Act (CCPA) dos Estados Unidos, o Personal Information Protection and Electronic Documents Act (PIPEDA) do Canadá e a Lei de Proteção de Dados Pessoais do Japão e da Coreia do Sul. Embora haja diferenças entre elas, todas têm em comum a proteção da privacidade e dos direitos das pessoas em relação aos seus dados pessoais, e a imposição de sanções em caso de descumprimento.

“Liberty” (1983), de Jean-Michel Basquiat.

E as redes sociais nisso tudo? Se não regulamentadas, podem mesmo gerar conflitos armados, como preconiza a estadunidense Barbara Walter?

Como sabemos bem, as redes sociais desempenham um papel significativo na disseminação de informações e opiniões em todo o mundo, o que pode, sim, levar a tensões e aos níveis mais alarmantes de desinformação. Afinal, destituída das mãos de maestros, a orquestra é conduzida sob uma batuta própria: neste perigosamente livre ecossistema, não existe o filtro que deveria pautar a prática jornalística, por exemplo, e, sendo assim, esse ecossistema pode ser usado não só para difundir informações falsas, mas também para incitar o ódio e a violência, amplificar as divisões sociais e políticas, e muito mais. Em casos extremos mas bem possíveis, essas tensões podem até levar a conflitos armados e guerras. A regulamentação das redes sociais ajuda a conter essas tensões e impedir a propagação de informações falsas e prejudiciais. 

A regulamentação das redes sociais é importante por várias razões, como:

Proteção dos direitos dos usuários — Garantir que as empresas de mídia social sejam responsáveis ​​por qualquer conteúdo que viole a lei ou os direitos humanos.

Combate à desinformação Informações falsas ou enganosas podem ter consequências graves, como prejudicar a saúde pública ou influenciar a opinião pública. É necessário impor padrões de verificação de fatos e promover a transparência nas práticas de moderação de conteúdo.

Prevenção de abusos Prevenir assédio, bullying, intimidação e outras formas de abuso online, criando padrões claros para o comportamento aceitável e tornando as empresas de mídia social responsáveis ​​pela remoção de conteúdo ofensivo.

Promoção da concorrência Algumas empresas têm poder de mercado significativo, o que pode levar a práticas anti-competitivas e prejudicar a inovação. A regulamentação ajuda a promover a concorrência, estabelecendo regras claras para a concorrência justa e impondo limites à concentração de poder de mercado.

As políticas de regulamentação das redes sociais variam significativamente entre os países e dependem do contexto político, cultural e legal de cada um. Algumas das abordagens mais comuns incluem:

Auto-regulação pelas próprias empresas de tecnologia Embora sejam frequentemente criticadas por serem inconsistentes ou pouco claras, muitas empresas de tecnologia têm suas próprias políticas de moderação de conteúdo, que visam limitar a disseminação de conteúdo considerado inadequado, ofensivo ou prejudicial

Regulamentação governamental Alguns países, como a China e a Rússia, têm políticas de regulamentação mais rígidas para redes sociais, que incluem a censura e a vigilância ativa dos usuários. Outros, como a União Europeia, implementaram regulamentações para aumentar a transparência e responsabilidade das empresas de tecnologia em relação à moderação de conteúdo.

Autorregulação da comunidade Algumas redes sociais, como o Reddit e o Twitch, adotam abordagens mais descentralizadas, nas quais a comunidade de usuários é responsável por reportar e moderar conteúdo considerado inadequado.

As campanhas eleitorais de Donald Trump e Jair Bolsonaro são exemplos bem ilustrativos e notórios de uso danoso das redes sociais. Elas desempenharam um papel fundamental na eleição de ambos os candidatos, permitindo-lhes alcançar um grande público de forma direta, sem depender tanto dos veículos de mídia tradicionais. Plataformas como o Twitter, Facebook e Instagram foram utilizadas para comunicação com eleitores, promovendo suas políticas com a típica retórica populista e atacando seus oponentes debaixo dos panos. As redes sociais também permitiram que as campanhas dos candidatos fossem impulsionadas por bots e contas falsas, criando uma aparência de apoio popular que pode ter influenciado a percepção do eleitorado.

No entanto, a regulamentação deve ser equilibrada, respeitando o que se entende por liberdade de expressão. Até certo ponto, pelo menos. É preciso encontrar um equilíbrio entre a proteção dos direitos dos usuários das redes sociais e a proteção da sociedade contra a disseminação de informações perigosas.

Karl Popper por Ingrid Von Kruse.

Lembra do youtuber Monark, que no começo de 2022 defendeu a existência do partido nazista no podcast-fenômeno Flow? Ele lançou em praça pública uma opinião controversa, como tantas outras previamente expressas seja por ele ou por outros no já mencionado podcast, e há quem defenda que ele “estava no direito dele”. Para pensar sobre a situação, rememoremos o que nos disse Karl Popper, em seu livro The Open Society and Its Enemies, sobre o paradoxo da liberdade. O pensador parte da ideia de que a liberdade total leva à supressão do fraco pelo forte, já que a pessoa livre pode usar a sua liberdade absoluta para desafiar a lei, desafiar a própria liberdade e clamar por um tirano no poder. E quem tiver mais poder pré-estabelecido, sairá vencendo nessa. No entender de Popper, “a liberdade, no sentido da ausência de qualquer controle restritivo, deve levar à maior restrição, pois torna os violentos livres para escravizarem os fracos”. Com isso, Popper defende que “qualquer espécie de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo Estado”.

Trocando em miúdos: não há como existir uma liberdade que perpetue o domínio de pessoas sobre outras, seja com um discurso higienista ou com a utilização manipuladora e antiética de uma ferramenta.

Se as redes sociais forem um microcosmos de nós humanos enquanto sociedade, nada mais justo que ela receba a devida regulamentação. E não, mil vezes não: isso não quer dizer autocracia ou qualquer outra palavra que soa tão bem em um filme de ficção científica. O belo e imaculado direito de ir e vir, no final das contas, não é o direito de impedir outras pessoas de irem e virem.