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Bell Hooks em “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar”

Resenha de
“Tudo Sobre O Amor: Novas Perspectivas”

Este texto é mais um convite do que propriamente uma resenha. É um desafio imenso resenhar as 269 páginas de um livro essencial para pensarmos o amor na contemporaneidade. Em especial, o amor dentro, com e para comunidades negras. Assim, apresentarei brevemente cada um dos capítulos de Tudo sobre o amor para, posteriormente, tecer algumas costuras e reflexões. O livro foi escrito em 2000 e é o primeiro de uma trilogia, da qual também fazem parte Salvação: pessoas negras e amor e Comunhão: a busca feminina pelo amor.

Cabe, também, retomar brevemente a trajetória da autora. bell hooks tem sido uma voz erguida no sentido das lutas das mulheres negras em âmbito mundial. Seu nome de registro é Gloria Jean Watkins, mas a feminista negra adotou o nome de sua avó, Bell Blair Hooks. A grafia em letras minúsculas de seu nome revela um importante aspecto sobre as narrativas evocadas pela escritora: para ela, o conteúdo de sua escrita deve pesar mais do que sua pessoa ou seu nome. Nascida em Hopkinsville, uma cidade ao sul dos Estados Unidos, bell se tornou professora e doutora em Literatura. Sua produção é vasta, já tendo escrito mais de trinta livros, entre eles Ensinando A Transgredir – A Educação Como Prática da Liberdade (2013, Editora Martins Fontes), Olhares Negros: raça e representação (2019, Editora Elefante), Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra (2019, Editora Elefante) e Tudo sobre o amor: novas perspectivas (2021, Editora Elefante), para o qual dedicarei as próximas linhas deste texto. Assim, estruturarei a apresentação em prefácio + 14 pílulas – nem sempre doces – sobre o amor.

PREFÁCIO – Sobre a arte de abrir caminhos

Prefácios me encantam. São a porta de entrada para os livros. Na publicação apresentada aqui, a responsável por abrir caminhos é Silvane Silva, doutora em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora e pesquisadora do CECAFRO/PUC-SP. O prefácio à edição brasileira expõe uma perspectiva essencial para a leitura do livro: o amor é centro, e não margem. Se na canção “Deuses Ateus” o cantor e compositor Djonga afirma que “em tempos de ódio conservador, amar e mudar as coisas é luxo”, Silvane destaca que o desamor tem sido a ordem do dia. Diante disso, falar e praticar amor, em suas diversas formas, pode ser algo revolucionário.

INTRODUÇÃO: “Tocada pelo amor”

Na introdução a Tudo sobre o amor, a autora revela um aspecto que é essencial para a leitura do livro: o amor é necessário em qualquer movimento por justiça social.

hooks também fala sobre uma frase vista por ela em um grafite em Connecticut onde se lia “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Essa frase inspirou reflexões e um movimento de autoencontro com bell. Algum tempo depois, uma construtora pintou o muro do grafite de branco, restando algumas linhas que tornavam possível – e difícil – inferir a frase. Isso motivou um encontro de bell com o artista, onde refletiram que o desejo público de ser amado pode ser visto como ameaça numa sociedade onde o desamor é a norma.

1. “Clareza: pôr amor em palavras”

No primeiro capítulo da publicação, hooks expõe que somos ensinados a chamar muitas coisas de amor. Isso torna o ato de amar mais difícil. O amor necessita de uma série de elementos; entre eles, afeição, respeito, carinho, comunicação aberta, reconhecimento e compromisso. Segundo a autora: “Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento” (hooks, 2021, p.55).

Amor é ação.

2. “Justiça: lições de amor na infância”

O machismo e o patriarcado são barreiras para o amor:

Um dos mais importantes mitos sociais que precisamos desmascarar se pretendemos nos tornar uma cultura mais amorosa é aquele que ensina os pais que abuso e negligência podem coexistir com o amor. Abuso e negligência anulam o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação são as bases do amor. Ninguém pode legitimamente se declarar amoroso quando se comporta de maneira abusiva. Porém, em nossa cultura os pais fazem isso o tempo todo. As crianças escutam que são amadas, embora estejam sendo abusadas. (Idem, p. 64)

A punição severa não deve ser vista como ação positiva nos processos educativos. É na infância que temos o primeiro contato com o amor, a partir de nossas famílias. Isso chama atenção para a importância de garantirmos direitos para crianças e adolescentes. O desamor na infância acompanha o indivíduo por toda a sua trajetória, criando celeumas pessoais e coletivas.

3.“Honestidade: seja verdadeira com o amor”

Vivemos em uma sociedade onde a mentira é uma ferramenta para a manutenção do poder. O capitalismo e o consumismo também estimulam a mentira e o desamor.

Para termos uma sociedade pautada no amor, precisamos nos reeducar a partir da prática de emitir e receber verdades. A prática de temer a verdade – acreditando que ela sempre dói – nos afasta do amor.

4. “Compromisso: que o amor seja o amor-próprio”

O amor-próprio deve ser a base da prática amorosa. Os movimentos feministas contribuíram para que mulheres percebessem o poder da autoafirmação positiva. Muitas mulheres consideradas bem-sucedidas se observam em processo de auto-ódio, o que muitas vezes mina suas próprias realizações e seu encontro com o amor-próprio. Necessitamos trazer o amor para perto. A autora observa que: 

O amor-próprio não pode florescer em isolamento. Não é uma tarefa fácil amar a si mesmo. Axiomas simples que fazem o amor-próprio soar fácil só tornam as coisas piores. Eles levam muitas pessoas a se perguntarem por que continuam presas a sentimentos de baixa autoestima e auto-ódio se é assim tão fácil se amar. […] Quando vemos o amor como uma combinação de confiança, compromisso, cuidado, respeito, conhecimento e responsabilidade, podemos trabalhar para desenvolver essas qualidades ou, se elas já forem parte de quem somos, podemos aprender a estendê-las a nós mesmos. (Ibidem, p. 94)

5. “Espiritualidade: o amor divino”

A autora percebe que o interesse pela espiritualidade foi cooptado pelo capitalismo e pelo materialismo na sociedade estadunidense. Ir à igreja ou ao templo religioso não tem sido o suficiente para preencher o vazio observado nas sociedades contemporâneas, pois esse vazio vem de dentro, da alma:

O compromisso com a vida espiritual necessariamente significa que abraçamos o princípio eterno de que o amor é tudo, todas as coisas, nosso verdadeiro destino. Apesar da pressão massacrante para nos conformamos à cultura do desamor, nós ainda buscamos conhecer o amor. Essa busca em si é uma manifestação do espírito divino. (Ibidem, p. 115)

6. “Valores: viver segundo uma ética amorosa”

Para despertarmos para o amor, é necessário abrir mão da obsessão pelo poder. É necessário adotar uma ética amorosa, que abarque, inclusive, posicionamentos políticos como a empatia com pessoas que vivem sob sistemas de opressão.

O medo da mudança faz com que muitos de nós entremos num processo de traição contra nós mesmos. A mídia tem papel importante nisso, expondo massivamente imagens de desamor, ódio e violência. Não somos educados a ver o amor. 

Nosso espírito percebe quando agimos de forma antiética, e isso torna os caminhos para o amor mais tortuosos. Encarar nossos medos é uma das formas de se aproximar de uma ética amorosa pautada por cuidado, conhecimento, vontade de cooperar e respeito.

7. “Ganância: simplesmente ame”

A sociedade contemporânea tem se baseado na cultura do consumo desenfreado e do individualismo, em que o isolamento e a solidão causam ondas de depressão que acometem parcelas enormes da população mundial. Pessoas são tratadas como objetos. A autora provoca um exercício de viver a partir da simplicidade, o que nos conecta à comunidade e ao amor.

8. “Comunidade: uma comunhão amorosa”

O capitalismo afastou as famílias nucleares de suas famílias estendidas, fragmentando comunidades inteiras. Isso causa uma desordem sentimental e social, uma vez que é nas comunidades que começamos a construir e fortalecer laços de amizade. Esses vínculos nos trazem lições importantes na construção de núcleos familiares e do amor romântico.

O amor que criamos em comunidade nos acompanha pelo resto da vida.

9. “Reciprocidade: o coração do amor”

O amor nos permite adentrar o paraíso. Ainda assim, muitos de nós esperam do lado de fora, incapazes de cruzar o portal, incapazes de deixar para trás todas as coisas que acumulamos e que se interpõem entre nós e o caminho para o amor. Se, durante a maior parte de nossa vida, não fomos guiados no caminho do amor, geralmente não saberemos como começar a amar, o que deveríamos fazer e como deveríamos agir. (Ibidem, p.179)

Uma importante lição sobre o amor: é essencial olhar para nós mesmos. bell hooks estrutura este capítulo a partir de duas experiências amorosas que foram marcantes para ela, e isso nos empurra para um profundo mergulho em nós mesmos e nossos próprios caminhos.

Geralmente, são desenhados papéis dentro dos relacionamentos. Um é responsável por criar e cultivar o amor, enquanto o outro apenas o segue. Isso estabelece um jogo de poder nocivo para o amor. Precisamos rompê-lo, baseando-nos no princípio da reciprocidade.

10. “Romance: o doce amor”

O capítulo nos lança uma afirmação que soa como um soco na boca do estômago: “poucos de nós entram em relacionamentos românticos tendo capacidade de receber amor” (Ibidem, p. 200). Projetamos relacionamentos baseados em nossos traumas familiares e comumente temos dificuldade de olharmos para nós mesmos nos processos de busca pelo amor romântico. Ao longo de nossa vida, é introjetada uma ideia de que o amor necessita apenas de si próprio para existir. Porém, sem construção e investimento, não há amor.

11. “Perda: amar na vida e na morte”

A morte é um tabu em nossa sociedade, gerando uma sensação de medo coletiva baseado em estruturas de poder: “Culturas de dominação cortejam a morte. Por isso a fascinação constante pela violência, a falsa insistência de que é natural os fortes atacarem os fracos, os poderosos atacarem os sem poder. Em nossa cultura, a adoração da morte é tão intensa que se põe como obstáculo ao amor” (Ibidem, p.221).

O medo de parecermos fracos nos faz não olhar para a perda. hooks nos convida a fazer o inverso: olhar para o medo e deixar que ele nos olhe.

12. “Cura: o amor redentor”

Ao longo de nossas trajetórias, o sofrimento é inevitável. Mas está em nossas mãos o poder de decidir o que fazer com essas feridas. A cura é um ato de coletividade e comunhão. Curas individuais são árduas e muito mais propensas a possíveis decepções.

O amor é capaz de redimir. Retomando a frase que a autora destaca do grafite na introdução do livro, “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. E a busca continua porque, apesar de todo o desamor em nosso entorno, o amor é capaz de curar e regenerar. É necessário que comecemos um movimento de fazer as pazes com nós mesmos e com os outros através do amor.

13. “Destino: quando os anjos falam de amor”

Os anjos são aqueles que nos trazem boas notícias, que dão alento ao coração. Na igreja, a autora aprendeu que os anjos são “consoladores sábios nos momentos de solidão”. O amor divino muitas vezes traz conforto em momentos de solidão e os anjos são fortes aliados nesse sentido: 

Donos de perspicácia psíquica, da intuição e da sabedoria do coração, eles mantêm a promessa da vida plena por meio da união entre o conhecimento e a responsabilidade. Como guardiães do bem-estar da alma, eles cuidam de nós e conosco; Nossa virada em direção aos anjos evoca nosso anseio de abraçar o crescimento espiritual. Revela nosso desejo coletivo de regressar ao amor. (Ibidem, p.253)

O poeta Lande Onawale escreveu: “O amor é coisa que mói, muximba. E depois o mesmo que faz curar” – frase que pego emprestada para intitular este texto. E o faço porque entendo que Onawale e hooks se encontram, se entrelaçam e se complementam. O amor é aquilo que dói. Requer compromisso e responsabilidade, em especial numa sociedade pautada no desamor e na violência. Mas, ao mesmo tempo, é com e para o amor que podemos alcançar a liberdade.

Nos contam mentiras sobre o amor. A sociedade não nos ensina a amar. E nem nos empodera do gesto revolucionário que é o amor. bell hooks relaciona o amor com os principais problemas da sociedade contemporânea, observando que são as ações que constroem os sentimentos e que ele o atravessa enquanto comunidade. O amor não nasce e cresce sozinho. Amor é construção cotidiana. Amar dá trabalho. Mas saio alimentada de Tudo sobre o amor. bell hooks é mais uma vez vanguarda ao convocar, através de palavras, em tempos de guerra, uma revolução de amor.