Ilha Grande (2020), de Luiz Zerbini. Publicado em Luiz Zerbini: Sábados, domingos e feriados (Editora Cobogó).

“O agudo precisa de espaço. É preciso abrir o caminho para aquilo que exige um pouco mais de nossa voz. Abra bem a boca e deixe entrar o ar. Se acostume com esse outro som que sai de dentro de você. Expanda o peito para sentir. Não tema a força da nota, apenas se entregue a ela“ parecia interpretação de psicanalista, mas era, na verdade, um conselho de Roberta, a professora de canto.

Após 20 anos, a mulher decidiu retomar as aulas de canto. Foi preciso ganhar um mapa astral da prima de aniversário para que ela se lembrasse desse assunto.

“O que você faz de hobby?”, perguntou a  astróloga. “Seu ascendente precisa que você exercite seus hobbies”.

Achou aquilo uma bobagem, pois, no fundo, não acreditava em nada, e ao mesmo tempo acreditava em tudo. Mas a tal frase ficou rodando na cabeça da mulher como aqueles sabiás laranjeiras, que começam a cantar às três da madrugada no início da primavera.

Havia respondido à astróloga que seu hobby era fazer caminhadas. Mas ouviu como resposta: “Isso não é suficiente”. Então decidiu que era hora de voltar a cantar. Algo que tinha começado a fazer aos 19 anos, numa escola de bairro, quando saía da faculdade. Foi o que  a salvou de uma depressão, após um término de um namoro. Gostava de cantar a música Paralelas, de Belchior. “No Corcovado, quem abre os braços sou eu. Copacabana, essa semana o mar sou eu. Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão .”

Agora ela estava adulta, seu coração era definitivamente menos perverso com ela mesma e menos cruel. Além disso, tinha mercado para fazer, cartolina de filho para comprar, aniversário de criança para buscar, festa de tia avó para prestigiar. Mas não, ela não tinha um hobby.

Então se lembrou de como um dia gostou de cantar, procurou uma escola perto de casa, para não atrapalhar nem o trabalho, nem o almoço dos filhos.

Na primeira aula, a professora perguntou o que ela gostava de cantar. Sem pensar muito, respondeu: Joni Mitchell. E que sabia a letra de cor, como dizem os gregos, pelas cordas do coração. A professora achou ousada a nova aluna, mas topou tocar no piano para a A case of you: “I could drink a case of you and still be on my feet. I would still be on my feet”.

Quando reencontrou Joni em sua voz, ainda que fosse uma imitação barata, lembrou-se da moça que saía correndo da faculdade para as aulas de canto, ali perto da Rua Maria Antônia, lugar onde um dia, seu pai também foi jovem.

Na graduação, um professor costumava dizer que, quando criança, dormimos com os braços para cima, livres e entregues. É conforme apanhamos do destino, ao longo da vida, que vamos dormindo encolhidos, cada vez mais. Foi disso que se lembrou quando abriu o peito, dando espaço para o agudo. Ao cantar, não estava apenas dando espaço para a voz, mas para outra versão de si mesma – outras facetas que andavam perdidas, entre ondas interestelares do tempo e do espaço.

É preciso abrir o caminho e ressuscitar aquela que já fomos e que ainda habita dentro de nós. Certa vez, numa aula sobre Roma, ouviu que a cidade era uma mina de si mesma. Ou seja, a sua história sempre pode ser reencontrada dentro de si, basta cavar .

Somos minas de nós mesmos, não podemos desistir daquilo que um dia nos fez brilhar os olhos. Basta cavar.

Bendita astróloga. Bendita a Roberta. Salve Joni Mitchel.

*Dedico esse texto a Roberta, que nesse próximo mês estará dando a luz. Obrigada por me devolver minha majestade o sabiá.