#39Yes, nós somos barrocosArteFotografia

Viagem pitoresca pelo Brasil

A ideia principal do trabalho que tenho feito sobre as florestas brasileiras – Amazônia e Mata Atlântica – é a de criar um diálogo com os artistas europeus que vieram ao Brasil para retratar pela primeira vez a exuberância da floresta tropical.

Fico imaginando a emoção e a surpresa desses artistas viajantes ao se depararem com uma floresta tão grandiosa, diversificada e diferente do que estavam acostumados a ver. É esse sentimento que tento resgatar, fazendo um trabalho, exatamente dois séculos depois, com uma tecnologia atual – a fotografia digital. Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes. A minha inspiração se deu muito a partir dos trabalhos de Debret (Forêt vierge sur les rives du Paraíba, 1834; Vallée dans la Serra do Mar, 1834), Rugendas (Forêt du Brésil, vers 1829: Forêt vierge près de Mangueritipa, 1835), Hércules Florence, Martius e, principalmente, do desenhista, cientista e arqueólogo francês conde Charles Othon Frédéric Jean-Baptiste de Clarac, de 1816. Este último, por incrível que pareça, fez o primeiro registro da floresta brasileira (La Forêt Vierge du Brésil), e para mim, sem dúvida alguma, a imagem mais espetacular e bela feita até hoje de uma floresta tropical. Creio até ser impossível que alguém um dia possa fazer uma imagem de floresta tão maravilhosa como esta.

O fazer deste ensaio fotográfico para mim é extremamente prazeroso, pois passar o dia todo caminhando no meio da floresta é uma forma de se reconectar com a natureza, algo ainda mais importante para mim, que sou uma pessoa urbana, tendo vivido sempre em grandes cidades. E nessas inúmeras caminhadas, tive muitos momentos emocionantes: um deles foi quando me deparei com uma recém descoberta Figueira-brava centenária, uma árvore gigantesca com raízes tabulares, formando um desenho maravilhoso. Essas árvores possuem uma energia incrível, elas impõem e merecem respeito, pois são como deuses da floresta – devem ser reverenciadas e contempladas. 

Espero que com estas imagens eu consiga também emocionar as pessoas, e que de alguma forma esses sentimentos ajudem na melhor conscientização sobre a importância de mantermos estas florestas de pé.

“Busco recriar uma volta no tempo, para transmitir a sensação de descoberta desses locais sublimes.”


A viagem de Cássio Vasconcellos

Por Daniela Bousso

A obra de Cássio Vasconcellos caracteriza-se como um trabalho de ultrapassagem das fronteiras entre fotografia e outros meios, e insere-se em um campo pós-disciplinar de operações artísticas. O artista enceta o  experimental como ponto de partida e designa um território de atuação que reúne técnica e subliminaridade. O seu modo de experimentar as imagens consiste em uma reorganização do imprevisível numa minuciosa trama de relatos. Na mediação imposta pela revisão constante, eis que surge o resguardo de um patrimônio vivo que subjaz em franca releitura, com a persistência da técnica aliada ao universo do fantástico. Ao inspirar-se nas imagens pictóricas produzidas pelos artistas viajantes que estiveram no Brasil no início do século XIX, visita florestas da Amazonia, a mata Atlântica de São Paulo e do Rio de Janeiro e produz uma série de tomadas in loco. Esta é uma escolha, uma maneira de produzir uma ecologia cultural, de reconstruir um sistema de identidades e criar novas imagens, recuperando parte da sua ancestralidade: o seu tataravô era Ludwig Riedel, o botânico que foi diretor da Seção de Botânica do Museu Nacional do Rio de Janeiro e integrou a expedição Langsdorff na década de 1820. 

Uma minuciosa pesquisa antecedeu as tomadas fotográficas que constituem a série “Viagem Pitoresca pelo Brasil”,  baseada, entre outras,  na obra “La foret vierge du Brésil”, de autoria do Conde de Clarac.  Nesta série absolutamente planejada, ele opera vários processos de transformação da imagem: ao fotografar, a matéria-prima é captada para acertar o processo posteriormente. Planejamento, seleção, interferência e seleção final, são etapas que respondem perfeitamente ao seu repertório atual e o seu desejo é remeter-nos à mesma sensação de emoção que os pintores viajantes como Rugendas, Taunay, Debret, Hercules Florence, Martius e Clarac tiveram ao visitar o Brasil. 

Para chegar a estas imagens, o artista percorreu caminhos arriscados, que ultrapassaram o que deve ser feito – em teoria – com o meio fotográfico e com o digital, este é o campo pós-disciplinar de sua ação. 

Ao retomar a imagem, ele produz a impressão de um gesto litográfico: desenha no computador folha por folha, a luz, são horas a fio desenhando – um processo digital artesanal onde a ação do dispositivo é completada manualmente – como nos primórdios da fotografia, quando os fotógrafos desenhavam sobre o papel fotográfico para ajustar contornos, cores.

Nesta reencenação da obra de Clarac, Cássio evoca a nossa consciência sobre a crise ecológica, sobre as questões de transbordamento do mundo atual. Ao reorientar o seu processo fotográfico, ao mesmo tempo em que se renova, produz ficção e fabulações. Por meio destas florestas, ele nos conduz a uma ecologia cultural a respeito do possível apagamento de um universo intocado, quiçá, por suposto em risco de dissipação, matéria de interrogação suspensa.