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As cicatrizes do imperador

por Alberto Rocha Barros

Em 30 de outubro de 130 d.C., há mil e oitocentos anos, o corpo de um jovem entre dezoito e vinte-e-tantos anos foi encontrado morto no rio Nilo. Pouco depois verificou-se a identidade do rapaz: tratava-se de Antínoo, o favorito do Imperador romano Adriano Augusto (reinou de 117 a 138 da nossa era), que visitava o Egito com sua esposa, Sabina, e seu séquito. Ao saber da morte, Adriano ficara profundamente afetado, mergulhado num luto excêntrico: fundou uma cidade em nome do jovem no local de sua morte (Antinópolis), instituiu cultos a sua pessoa, ora como um deus (theos) encarnado ora como um heros (“herói”: um mortal deificado); organizou jogos regulares em sua homenagem em Atenas e em partes do Egito e da Turquia; por fim, fomentou e/ou financiou uma tradição estatuária celebrando suas feições – é um lugar comum dizer que, ao lado de Alexandre Magno, Augusto César, e do próprio Adriano, Antínoo é a personagem histórica mais comumente retratada da antiguidade clássica!

A figura de Antínoo, e sua relação com o Imperador Adriano, há tempos é objeto de intenso interesse, que atravessa a história ocidental e oriental: suas feições foram impressas em monumentos e em moedas que circulavam pelo Egito e Ásia Menor (moedas com seu perfil foram encontradas em mais de 30 cidades do oriente); uma quantidade significativa de textos antigos o mencionam repetidas vezes e especulam sobre sua vida, seu significado e sua morte; o artista renascentista Rafael Sanzio teria passado instruções precisas a Lorenzetto Lotti para esculpir a estátua do Jonas bíblico na Capela Chigi (em Santa Maria del Popolo, Roma), inspirada no busto conhecido como L’Antinoo Farnese (hoje, no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles); no romance mais famoso de Oscar Wilde, a beleza de Dorian Gray é comparada a de Antínoo; Fernando Pessoa compôs um poema em inglês sobre ele (Antinous, de 1918), e o jovem é personagem crucial no romance Memórias de Adriano (1951), de Marguerite Yourcenar. De atendente, pajem ou favorito de Adriano, Antínoo tornou-se objeto de culto religioso e, no mundo contemporâneo, até ícone da sensibilidade homoerótica.

Mas teria sido Antínoo amante de Adriano? Do mundo antigo, sobreviveram dois tipos de fontes de informação a esse respeito: evidência textual (escritos pagãos, cristãos e fragmentos de papiros) e evidência material (estátuas e inscrições). Essas fontes sugerem que havia sim um elo erótico entre eles, mas isso apenas levanta outras questões. Sabemos que Adriano favorecia uma estratégia de marketing que o tornava mais “grego” – talvez tenha sido um dos imperadores romanos mais helenizantes. Mas a pederastia ateniense favorecia relações com jovens (12-17 anos) aristocratas, e Antínoo não era nem tão jovem (alguns estudiosos acham que poderia ter morrido com cerca de 25 anos) nem aristocrata. Fugir dos ditames da altamente ritualizada pederastia ateniense era sinal de depravação e mau gosto. A versão romana da pederastia ateniense era mais brutal, com senhores abusando sexualmente de seus escravos e escravas – e as fontes sugerem uma relação mais complexa de companheirismo entre Antínoo e Adriano (e são raras e tardias as sugestões de que ele fosse um escravo. Ao que tudo indica, era um homem nascido livre).

É também importante ressaltar que a linguagem grega do amor (que inclui os conhecidos vocábulos eros e philia) contém em seu campo semântico não apenas referência aos laços sexuais e/ou afetivos, como nós os entendemos, como também a ideia de algo que demanda de nós profunda atenção, uma mobilização da alma. Daí uma dimensão pouco lembrada da palavra “filosofia”, usualmente traduzida, de modo vago e meio New Age, como simplesmente “amor ao saber”, mas que também implica uma prática intelectual voraz e dominadora que demanda atenção absoluta, chegando aos extremos de comandar que o filósofo sacrifique seus prazeres mundanos para se dedicar exclusivamente à ela. A retórica do erotismo greco-romano não é necessariamente sexual, podendo implicar um anseio ou desejo casto e contemplativo.

Embora tenhamos boas razões para acreditarmos que a relação entre Antínoo e Adriano fosse sexual, gostaria apenas de deixar aberta outras possibilidades. O escritor e satirista Luciano de Samósata, contemporâneo de Antínoo e Adriano, em seu Descida aos Infernos, ou O Tirano lista os atributos do soberano: “ouro, prata, roupas sofisticadas, cavalos, banquetes, pajens no esplendor da juventude, mulheres…” Trata-se de um catálogo do luxo associado ao poder. A palavra que traduzi como “pajem” é também a utilizada para “favorito” ou “rapaz”. Assim, Antínoo poderia ter sido um sinalizador de luxo extremo, um objeto de beleza rara que apenas imperadores podem possuir, desfilar e imortalizar em pedra: como os tigres e os leões tão desejados por casas reais através da história.

Mas há também uma estranha (e potencialmente macabra) reviravolta no destino de Antínoo. O historiador Cássio Dio, que escreveu 80 anos depois dos eventos que relata, nos diz que o jovem “morreu no Egito, ou porque caiu [acidentalmente] no Nilo, como escreve Adriano, ou porque foi sacrificado, que é a verdade”. Existem duas anedotas sobre o sacrifício de Antínoo. De acordo com uma, sua morte coincide com um festival no Nilo por volta do dia 30 de outubro: data na qual um jovem e belo Osíris fora assassinado e teve seu corpo jogado ao Nilo. A posterior transformação de Osíris em deus está associada à fertilidade do vale. Nesse caso, Adriano poderia estar engajando-se num engenhoso plano político-cultural: fundindo um mito egípcio com um novo evento mítico romano, para unir as duas culturas… Mas outras fontes dizem que Antínoo se sacrificou voluntariamente, por amor a Adriano, num ritual mágico que garantiria ao Imperador longa vida.

Essas múltiplas possibilidades estimulam a nossa imaginação, mostrando-nos, ao mesmo tempo, o quanto e o quão pouco conhecemos de certo na Antiguidade Clássica. Os bustos do jovem certamente são curiosos: com rara maleabilidade, Antínoo aparece no estatuário ora com feições egípcias, ora como avatar de Osíris; por vezes como Dioniso ou outros heróis gregos. Certamente, é a derradeira encarnação da tradição grega de celebrar a beleza da juventude do corpo masculino.

Adriano Augusto é um dos imperadores que mais deixou marcas em nosso mundo físico: a famosa Muralha de Adriano, no norte da Inglaterra, marcava as fronteiras do império; sua famosa Vila Tivoli (“Vila de Adriano”). É um dos pontos turísticos mais visitados em Roma; ele foi o responsável pela reconstrução do celebrado Panteão e do Castel Sant’Angelo em Roma (concebido para ser o Mausoleu de Adriano)… além de nos ter legado um sem número de estátuas de Antínoo… Seriam essas meras marcas de um complexo projeto de poder, ou cicatrizes mais profundas?