
A inquietude do nu é um dos aspectos mais marcantes no estilo do pintor alemão
O nu é um tema explorado na arte fazem muitos séculos. De fato, a descrição do “corpo sem ornamentos” pode ser percebida desde a antiguidade. Porém, ao pensar o nu na arte moderna e contemporânea, existe um artista plástico que se destaca pela forma peculiar e intensa de sua representação – Lucian Freud. O artista, falecido em 2011, foi reconhecido como um dos maiores pintores figurativos em vida e sua notoriedade é proveniente, em grande parte, da composição inquietante e da vulnerabilidade humana desenvolvida nas suas telas, compostas de corpos nus.
Nascido em Berlim no período entre guerras e refugiado em Londres logo após a subida de Hitler ao poder, em 1934, Lucian Freud passou a maior parte de sua vida na Inglaterra. Neto de Sigmund Freud, fundador da psicanálise, o pintor buscava escapar de qualquer relação direta de sua obra a seu avô. Porém, é difícil não relacionar a forma como Sigmund Freud buscava quebrar a barreira emocional e o sofrimento do paciente à forma com que Lucian despiu seu muso-modelo da censura social e transmitiu através da pintura a verdade crua e animal dos seres humanos, moldados pela sua consciência e pelo seu olhar de pintor.
Enquanto jovem, Freud era um desenhista muito preciso e pintor minucioso. Sua maturidade se desenvolve a partir da década de 60 quando o artista, influenciado pelo então amigo Francis Bacon, adota um estilo de pintura livre e intenso, atingido através da utilização da técnica de impasto e aplicando gradações de cores, similares aos “Old Masters”.
A partir de então, Freud passa a pintar principalmente retratos nus e a trabalhar apenas de seu ateliê, que se torna cenário importante da composição de sua obra e crucial na relação de intimidade entre pintor e modelo, acentuada pela lentidão do seu processo de pintura.
Produzindo em média cinco quadros por ano, cada tela sua podia levar anos para ser concluída. Tal lentidão requeria do modelo uma dedicação e determinação de permanecer na mesma pose perante o pintor por um longo período de tempo, uma tarefa árdua e quase cruel. Dessa mesma forma, Freud desenvolvia uma relação de intimidade com o modelo, criando uma curiosa relação entre o retrato, a pintura, o tempo e o corpo humano.
São corpos distorcidos, sofridos, vivos e desgastados com o tempo, cuja pele e a carne humana estão expostas na cara do observador, tornando a pintura de Freud singular e intensa, e muitas vezes repelente.
Os sujeitos ou os corpos de suas pinturas não são escolhidos de forma arbitrária, são normalmente familiares, amigos, amantes ou pessoas que ele acha interessantes. Suas filhas foram representadas em várias telas, como Naked Girl Laughing (1963) e Large Interior Paddington (1968/69), assim como sua mãe, The Painter’s Mother (1982).
Existe também um foco em corpos prósperos, mulheres grávidas ou gordas. Na busca de captar o real, o pintor se autodenominava um biólogo, isto é, um pintor do corpo humano cuja arte é autobiográfica. Barrigas flácidas, marcas de rosto, bolsa embaixo do olhos, rugas, a imperfeição de seus modelos não passam despercebidos ao seu olhar, ao escrutínio do tempo e das posições que o pintor escolhia para seus modelos em suas telas.
Um grande exemplo disso é a tela Leigh Under the Skylight (1994). Nesta obra de tamanho monumental, Leigh Bowery, um artista performático e amigo do pintor, é retratado nu através de um ângulo baixo e inconvencional. Usando como temática um homem corpulento, grande e impressionante, com suas partes íntimas nitidamente expostas, Freud retrata um nu clássico com uma grosseira textura que é atingida através da pincelada e da luz que o artista projeta na tela.
Além disso, a posição de Leigh nos revela o processo desconfortável e a tarefa árdua pelos quais passou. Nesse retrato, assim como em outros do período mais recente, como em Benefits Supervisor Sleeping (1995), um retrato da gerente Sue Tyller, fica evidente a capacidade do pintor de transcrever em sua tela a sensibilidade, a emoção, assim como a dissipação de tudo o que está envolvido na ocupação de um corpo abundante.

Assim como Nietzsche, Freud situa a essência da identidade humana no corpo e não na alma. Ele desnuda seus sujeitos, colocando em evidência a verdade humana nua e crua.
Freud despe o homem da sua armadura social e de seus artifícios psicológicos através de árduas sessões de pintura. Seus retratos mais recentes incluem Queen Elizabeth II (2000/01) e Kate Moss, retratada em Naked Portrait (2002).
O olhar cruel de Freud em seus retratos solidifica seu estilo progressista, transgressor e libertador diante dos cânones de beleza que caracterizam as imagens do corpo humano ao longo da história, assim como estabelece seu poder de emoção e projeção da realidade vista através dos olhos do pintor ao observador.
Dissimilitudes à parte, a inquietude do nu de Lucian Freud reavaliou o corpo humano na mesma profundidade em que seu avô remapeou a mente. Porém, apesar da homogeneização percebida no mundo contemporâneo, o ser humano permanece um mistério a ser desvendado e a nudez, mais um elemento nessa descoberta. A força da personalidade da pincelada nas pinturas de Freud expõe em sua plenitude o frescor da carne humana e as limitações da fisicalidade do ser humano.
