Fotos de Riccardo Riccio para o projeto Seeds and Tales.
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Quantas histórias cabem em uma semente?

No coração das paisagens rurais do Brasil, reside um conhecimento ancestral que transpõe o simples cultivo de plantas alimentares. É algo além da agricultura; é uma relação profunda entre seres humanos e não humanos, um vínculo tecido ao longo de gerações por aqueles que entendem que uma semente é mais do que um grão inerte. São histórias vivas, carregadas de memória, esperança e sobrevivência.

Ao começar nossa jornada de pesquisa e catalogação de sementes nativas pelos biomas do Brasil, ficamos impressionados com a reverência que os agricultores tradicionais têm por suas sementes. Para os guardiões e colecionadores que conhecemos, cada semente tem uma personalidade própria, uma história particular que ilustra os saberes da sua comunidade e que merece ser contada.

Tecnologias ancestrais

O melhor jeito de começar a contar esta história é partir da sabedoria ancestral dos povos tradicionais presentes em todos os lugares em que estivemos, um saber que acompanha, há gerações, comunidades, aldeias e famílias de norte a sul do país. Da Amazônia ao Pampa existe a visão do planeta como um macro-organismo, onde humanos e não humanos coexistem em pé de igualdade, promovendo um ciclo virtuoso de vida através da terra.

A partir da observação e do estudo dos processos naturais das florestas tropicais em que vivem, ou até mesmo por conhecimentos que vêm através de experiências oníricas — como é o caso da combinação entre chacrona (Psychotria viridis) e jagube (Banisteriopsis caapi) para a criação da ayahuasca —, notou-se que povos e comunidades em todo o país têm suas próprias tecnologias ao se relacionarem com a terra, e nessa relação de igualdade percebem-se espécies vegetais que coexistem harmoniosamente, formando consórcios equilibrados. Assim, plantas como banana, mandioca, bacaba, milho, açaí, castanheiras e cacau são cultivadas juntas, replicando a complexidade e a resiliência das florestas naturais.

Essa cosmovisão permitiu o desenvolvimento de biomas ricos em biodiversidade, como a Amazônia, bioma moldado pela intervenção humana ao longo de milênios. A terra preta indigena — solo fértil criado por práticas agrícolas ancestrais — demonstra como os povos tradicionais desse território transformaram não só as terras pobres em ambientes férteis e abundantes, mas também trouxeram uma interessante relação com a vida presente em cada semente plantada.

 

A história de um povo está nas espécies que ele cultiva

Numa visita a um assentamento do Movimento Sem Terra (MST), um dos agricultores nos ofereceu alguns exemplares do gergelim da sua coleção, conhecido cientificamente como Sesamum indicum. À primeira vista, essas sementes pequenas, uniformes, desbotadas e despretensiosas, não se destacavam dentro dos critérios estéticos e pictóricos estabelecidos para o nosso projeto. No entanto, ao notar as palavras que esse agricultor escolhia para se referir aos seus pequenos gergelins brancos, percebemos que a história por trás dessas sementes revelava algo muito maior.

Ao falar sobre elas, o agricultor o fazia com uma reverência impressionante, manipulando-as com o cuidado e o respeito que se dedica a algo que se ama muito. Ele descrevia simultaneamente etapas do ciclo de crescimento do gergelim, seus gostos e suas preferências climáticas, traços da sua personalidade — quase como se falasse de um familiar. Essa intimidade e reverência no seu discurso nos fez entender que tínhamos que ter um olhar além da estética ou da fotografia: não estávamos ali ouvindo sobre uma simples variante do Sesamum indicum, estávamos conhecendo pessoalmente o Gergelim do Mariano. Nesse momento, percebemos com clareza o propósito do projeto: tão importante quanto capturar a beleza das sementes em detalhes, registrar a história das sementes-familiares, é honrar a importância dessas espécies na vida das pessoas que as cultivaram.

Nesses dois anos de jornada pelo Brasil, encontramos outras espécies que, embora comuns, carregam um peso cultural e ecológico imensurável. A bananeira, Musa paradisiaca, por exemplo, é fundamental na criação de florestas produtivas. Essa espécie se desenvolve num ciclo matrilinear, em que três gerações de bananeiras nascem do mesmo bulbo e coexistem para garantir a produção de frutos saudáveis. Avó, mãe e filha crescem juntas, de modo que a avó, após gerar um cacho de bananas, tem seus frutos coletados e é podada rente ao chão. Sua matéria orgânica é devolvida ao solo, oferecendo nutrientes e umidade para as outras espécies. Depois dessa poda, a sucessão continua, e a próxima bananeira a gerar frutos se torna avó, e a pequena bananeira filha tem espaço e luz para brotar e se desenvolver. Essa estrutura cíclica, que lembra a organização de uma família, é crucial para o sucesso das espécies cultivadas nas agroflorestas, nas quais cada planta desempenha um papel essencial na manutenção do equilíbrio do ciclo ecológico.

Outro exemplo é a mandioca, com variação popular “mãedioca”, uma planta robusta e resistente, capaz de romper solos compactados e criar condições favoráveis para o crescimento de outras espécies vegetais mais sensíveis. A mandioca é a verdadeira mãe da terra. Valente, quando plantada junto de outros vegetais, ela oferece sombra e nutrição às delicadas espécies frutíferas que levarão anos para atingir a maturidade. Além disso, ela é a base alimentar de várias comunidades ao redor mundo e um símbolo de resiliência dos povos do Sul Global.

Essa relação de respeito e reciprocidade com a terra também é evidente no cultivo tradicional em conjunto do milho, do feijão e da abóbora — essa é a cultura MILPA ou a cultura das “três irmãs”, uma tecnologia presente no saber de plantio de todas as Américas. Quando plantadas juntas, essas espécies criam um ecossistema de suporte mútuo que garante a fertilidade do solo e a produção sustentável de alimentos. O milho desponta para o céu em busca do sol, fornecendo estrutura para o feijão enramar e encontrar a luz. O feijão garante maior fertilidade do solo, pois aumenta a fixação de nitrogênio. Já a abóbora, de perfil mais rasteiro, protege a terra do sol pleno com suas folhas largas, impedindo a perda de umidade. Nessa dinâmica de mútuo suporte, as irmãs vão de mãos dadas sendo conduzidas até a maturidade, no momento da colheita simultânea. Essas espécies são a base alimentar de comunidades inteiras e constituem um papel fundamental na cultura e na culinária brasileira.

Hoje, em tempos em que o avanço do agronegócio e a devastação ambiental ameaçam toda essa riqueza, genéticas ancestrais presente em famílias há gerações estão sob ameaça de extinção pelo cruzamento acidental com milhos transgênicos que dominam as lavouras de norte a sul do país.

O vento, além de carregar consigo pesticidas aterrorizantes, semeia os poros das sementes GMO que fecundam as delicadas espécies crioulas, que, com isso, infelizmente se perderam para sempre. Essa perda das características originais dos milhos ancestrais tem impactos imensuráveis, que vão além da espiga. Quando essas culturas de milho se perdem, as manifestações culturais dos seus povos de origem se perdem junto. O apagamento histórico dos nossos povos originários começa antes de tudo com o esquecimento da sua cultura alimentar.

Dessa maneira, o convívio com esses guardiões de sementes nos ensinou que preservar a biodiversidade da terra vai muito além da simples conservação de espécies. Trata-se de proteger histórias, culturas e modos de vida que estão intrinsecamente ligados a ela. Cada semente que é plantada carrega consigo o legado de uma comunidade, a ancestralidade de um povo e a formação de uma família e nos ensina que a real relação entre os humanos e a natureza deveria estar fundamentada na compreensão do cuidado e na contemplação de tudo o que é vivo.

O Seeds Collective é uma iniciativa de pesquisa e fotografia de sementes ancestrais brasileiras, tendo como objetivo não só fotocatalogar sementes, mas também homenagear povos originários, comunidades quilombolas, assentadas, indígenas, ribeirinhas e caiçaras em todos os biomas do Brasil. Até setembro de 2024, o projeto coletou mais de trezentas espécies de sementes únicas. Ao lado de guardiões de sementes, ele documentou tradições orais sobre cultivo e manejo, propriedades espirituais e medicinais, e histórias especiais associadas a cada uma delas. Essa pesquisa está compilada no livro-catálogo Seeds and Tales, publicado este ano pelo coletivo.