Plano em superfície modulada número 5, em exposição na Pinacoteca de São Paulo na mostra Lygia Clark: projeto para um planeta.
Literatura

Escutar e sentir: Supersônica e o fascinante mundo dos audiolivros

Que o mercado editorial brasileiro tem lá suas imperfeições, todo mundo sabe. Mas há uma grande lacuna que raramente ganha atenção: a oferta praticamente inexistente de audiolivros de qualidade em português. Essa incompletude atinge, sobretudo, pessoas com deficiência visual, mas também todas as pessoas que buscam uma maneira alternativa de desfrutar da literatura. Sem audiolivros de qualidade, a solução acaba sendo a leitura assistiva — que, de acordo com o vernáculo popular, é quando um livro é lido pela “mulher do Google”. Desnecessário dizer que esse cenário está longe do ideal.

É aí que entra a Supersônica, editora que tem como objetivo fazer com que os audiolivros sejam não apenas leituras, mas sim projetos artísticos. Daniela Thomas, Maria Carvalhosa, Beatriz Bracher e Mariana Beltrão são impulsionadas pelo desejo de proporcionar uma experiência de leitura única e enriquecedora, tanto para pessoas cegas ou com baixa visão quanto para pessoas que buscam por novas alternativas de consumo literário. O cerne da missão da editora reside na convicção de que a literatura é uma jornada de descoberta e imersão, capaz de transportar os leitores para novos universos e perspectivas — então, por que não expandir essa experiência com atores que de fato interpretem aquelas linhas tão bem urdidas? 

Trecho de O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, lido pela atriz, cantora e compositora Laís Lacôrte

O quarteto de sócias é o conjunto perfeito para a missão. Daniela, como você talvez já saiba, é uma renomada diretora e roteirista de cinema, com grandes títulos na sua trajetória, como Terra Estrangeira (1995) e Linha de Passe (2007); já Beatriz Bracher, além de autora premiada, é editora de longa estrada, sendo uma das fundadoras da tão amada e conceituada Editora 34; e Maria, que ficou cega aos 13 anos, é uma estudante de letras profundamente apaixonada por livros. A equipe junta todas as características que a Supersônica precisa: o primor na direção de atores, o know-how profundo do funcionamento de editoras, o conhecimento enciclopédico de livros e uma habilidade mútua de abrir espaço para processos flexibilizados e aquela ajuda que é capaz de complementar, especialmente quando o caso é acessibilidade.  

Cada audiolivro é concebido como um projeto completo, com atores que se entregam à leitura com a mesma paixão e profundidade que dedicam a filmes ou peças teatrais. Essa atenção aos detalhes e a busca pela excelência refletem-se na narrativa vívida e envolvente, que transcende a mera transposição do texto escrito para o formato auditivo. Mas isso não é tudo. A proposta vai além por também ter em seu DNA a curadoria. As obras são escolhidas a dedo para elevar ao dobro o impacto da leitura. Ao combinar uma seleção arrojada com uma direção artística cuidadosa, a Supersônica desafia a concepção de audiolivros que predomina por aqui, elevando-os a uma forma de arte em si mesma. Cada obra é uma experiência sensorial que estimula a imaginação e convida os ouvintes a mergulharem profundamente nas palavras e nas emoções transmitidas pela voz dos narradores.

Por meio de seus audiolivros, a editora não apenas quebra barreiras de acesso à cultura, mas também inspira uma nova forma de apreciação e compreensão das riquezas da palavra escrita. 

Conversamos com Daniela Thomas, que nos contou um pouco sobre seu trabalho com atores, os pormenores dos contatos com as editoras e o que enxerga para o futuro da Supersônica.

Qual foi a gênese da Supersônica?

Daniela Thomas: Eu conheço a Maria desde quando ela era um feijão na barriga da Mari, mãe dela. É uma pessoa que eu acompanhei desde bebê. Fiquei muito chocada quando ela viveu o drama da cegueira aos 13 anos. Foi uma coisa que afetou a todos nós… Como é que uma pessoa vive depois de atingida por esse infortúnio? E a Maria era uma rata de biblioteca. Desde pequenininha, ficava às voltas com livros. E isso não mudou. Quando você conversa com ela, você entende isso. E aí eu, por meu lado, morei quase oito anos seguidos fora do Brasil, na Inglaterra, nos Estados Unidos. E, quando voltei para cá, senti necessidade de manter contato com a língua inglesa, que sumiu do meu convívio. E aí o audiolivro em inglês surgiu como opção e eu me viciei, porque era uma maneira de ler e de ouvir inglês, de me manter conectada com a língua.

Isso foi em que época?

DT: Eu voltei pro Brasil em 1986, mas isso aconteceu mais nos anos 2000. Quando descobri a Audible, tive acesso a isso e me diverti muito, porque, por exemplo, eu gostava de correr. Aí eu corria aqui na vizinhança mesmo, no verão, fazendo 30 graus, ouvindo Pais e Filhos, do Turguêniev, que se passa em grande parte de uma nevasca. Então, você tá correndo no calor e ao mesmo tempo atravessando uma nevasca. Tem uma coisa muito forte, e muito interessante, de dissociação cognitiva. Aí, por um acaso, eu ouço a Maria no podcast da Quatro Cinco Um falando sobre audiolivros — na verdade, reclamando dos audiolivros. No geral, ela consegue informação através do celular ou do computador com leitura assistiva, quando você programa o seu celular para transformar tudo o que está escrito em áudio. Mas é aquele áudio robótico, aquela voz sem expressão. Ela tem lido assim todos esses anos, com exceção de alguns livros feitos pela Fundação Dorina Nowill, mas que também não são projetos artísticos. Quando ouvi isso, falei: “Meu Deus, vou fazer um negócio com a Maria”. Eu, com meu conhecimento de atores e com a minha paixão por audiolivros; e ela com a cultura de literatura e o desejo de ter uma espécie de biblioteca de livros maravilhosos. Vamos fazer isso! 

Conversamos com a Beatriz Bracher, que é uma editora experiente e uma grande amiga, além de grande autora. Ela foi a dona da Editora 34, agora é dona da Editora Chão, e isso era importante, porque a gente estava entrando em um mercado sem nenhum repertório. Foi assim que começou.

Os audiolivros que você ouvia em inglês já eram com atores? Esse é um mercado mais estabelecido lá fora?

DT: Muito mais estabelecido. Aqui a gente tinha coisas como Drummond lendo os próprios poemas e aquela experiência ótima com os Disquinhos [coleção lançada em 1960 em pequenos discos de vinil e diversas cores em que cada um contava uma história, com músicas e interpretações feitas pelo grupo Teatro Disquinho]. Mas não ia muito além disso. Eu sempre associo essa experiência à experiência de ouvir histórias dos seus pais quando você é criança. Tem algo muito afetivo, muito profundo nessa história contada para você. Tá dentro da sua cabeça. 

E tem uma coisa interessante, porque pensa assim: o ator tem uma vida muito irregular de trabalho, certo? Então, é uma proposta interessante para eles, porque é um projeto artístico como outro qualquer, só que eles podem fazer isso entre um filme e outro, entre uma peça e outra, uma novela e outra. É mais “regular”, mas é um projeto artístico também, porque não é apenas uma locução. É uma coisa pensada como uma obra. A leitura em si é uma obra.

Como a Supersônica aborda editoras e autores para obter permissão para adaptar suas obras? Existe um processo específico?

DT: Não necessariamente. Com a editora Fósforo, por exemplo, a gente vive uma coisa muito particular por causa da Annie Ernaux. A Fósforo foi visionária, porque escolheu a Annie antes dela ganhar o Prêmio Nobel. Quando começamos a conversar com a Fósforo a gente propôs a Isabel Teixeira e ela adorou a ideia. Ela fala muito bem francês e tem uma experiência grande com narração. Então, a Fósforo entrou em contato com a Gallimard, que é a editora da Anne na França, porque realmente é um universo muito complexo. Tem que pagar o editor, o autor, o tradutor, muita gente.

E até imagino que isso tenha um peso na decisão de quais vocês vão ou não fazer. Quais são os critérios para escolher? Está mais pra: “esse livro é ótimo, gostamos dele”; mais pra: “esse livro tem muita teatralidade, a narração é super fluida, na voz de um ator ia ficar excelente”; ou mais para: “as condições desse são melhores”?

DT: São todas essas coisas e mais umas quatro. Mas eu acho que, antes de tudo, é a biblioteca da Maria. O que eu quero dizer com isso é: a gente tem uma editora que é a própria Maria, que é uma pessoa absolutamente apaixonada por livros. Ela leu esses livros pelo Google, pelo pelo leitor do iPhone e ela quer ler esses livros apropriadamente. Então, os livros que a interessam acabam sendo sempre um ponto de partida. Estamos abertos para os clássicos. A gente está fazendo Dostoiévski, Tolstói, Machado de Assis, James Joyce. Mas a gente também está fazendo autores novos, como uma autora do Senegal que lançou seu primeiro livro com 17 anos e foi incrível. 

A Supersônica tem o gosto de alguém que junta o clássico com o contemporâneo. Tem uma pegada jovem, porque a Maria tem 22 anos, mas tem uma pegada de uma jovem apaixonada por literatura, o que acaba misturando um pouco. 

Conte sobre a experiência de dirigir a leitura dos atores em estúdio. É uma questão intrigante, porque não estamos falando de um texto de um único personagem, de um texto que o ator vai encarnar um personagem. Trata-se de tudo que envolve a narrativa. Tem a participação do narrador, por exemplo, muitas vezes no meio da fala. Imagino que isso deva mudar muito o trabalho do ator. 

DT: Muito! E tanto eles quanto eu estamos aprendendo a lidar com isso, sabe? Geralmente, funciona assim: lemos o livro e nos encontramos. E aí a gente começa a pensar em como é essa maneira de contar, de que maneira vamos fazer isso. A gente vai contar isso com bastante distinção entre vozes? Com muita interpretação? Ou mais distanciado? Cada livro é um narrador, né, então tem que considerar a primeira pessoa ou a terceira pessoa também. Enfim, é como qualquer projeto artístico para mim. É como fazer o elenco de um filme, tenho que fazer todas aquelas escolhas. Só que o interessante é que eu descobri que existe um pedido de “conta para mim” para o ator. Uma coisa de “eu não consigo e, se você não contar para mim, eu não tenho como saber o que está acontecendo”. E é essa conversa que eu tenho com eles. Essa conversa desperta algo no ator muito impressionante, algo que proporciona uma experiência diferente de ler pura e simplesmente. Eu sei ler, mas eu não sei contar, contar é outra coisa. Então, está sendo uma experiência muito, muito rica, tanto para mim quanto para os atores. 

A sua direção chega a ser algo muito nos pormenores, de ficar atenta à inflexão das palavras?

DT: Tem hora que sim. É incrível, porque tem uma questão de interpretação. E alguma interpretação tem que vingar, sabe? A do ator ou a minha. E aí a gente negocia. Sabe o que eu acho? E a própria Maria é muito ciente disso também. Tanto é que ela participa muito do processo. No caso de Os mortos, do James Joyce, foi ela que ficou com o Caio [Blat]. Fiz o primeiro ensaio, no primeiro dia de gravação, mas ela me acompanhou até o final. Ela fala “não, essas frases, você entendeu errado, ele quis isso não aquilo”. 

Trecho de Os mortos, de James Joyce, lido pelo ator Caio Blat

Recentemente, falando sobre uma gravação que ele fez de poemas escritos com Inteligência Artificial, Werner Herzog comentou que, na hora em que ele foi gravar, havia uma dúvida se deveria fazer uma voz mais robótica ou se ele colocaria humanidade na interpretação. E é claro que no final ele leu com emoção, numa inversão da voz do Google lendo um texto escrito por pessoas. Nos audiolivros, há uma batalha a ser vencida contra a IA?

DT: Quando a gente começou, falaram: “Olha, fiquem cientes que vocês daqui a pouco vão estar competindo com ferramentas automatizadas mais aprimoradas”. Eu acho que todas as coisas analógicas irão competir sempre com as eletrônicas e as artificiais, mas o charme do analógico é algo assim que convive. A gente continua visitando o Coliseu, entendeu? A gente continua indo no Panteão e ficamos lá em estado de choque. E a gente vai nas bibliotecas, a gente vai nas livrarias para tomar café, mesmo que não seja para ler, porque os livros ainda são um fetiche de conforto. Eu acho que a gente vai conviver, mas acho que vai ter espaço em suas especificidades para todas essas coisas. Artificial e não-artificial, né?

E a Supersônica entra com algo que é bem difícil de se alcançar, mesmo com uma IA, que é justamente a direção artística. Por mais que se tenha uma IA que leia com emoção, não vai ter essa direção. 

DT: Além disso, eu acho que a gente é uma combinação do projeto artístico e da seleção em si. Quando eu mencionei a ideia para a Maria e para a Bia, eu falei do Mubi. O Mubi agora tá um gigante, mas, quando começou, tinha dez filmes. Você poderia pegar qualquer um desses dez filmes e seriam melhores do que todo o repertório da Netflix. Eu queria que a gente fosse um hub, queria que a pessoa fosse na Supersônica porque lá ela vai ouvir um audiolivro incrível. A seleção que a gente faz é uma seleção que vai te dar experiências maravilhosas. Então, não é só que a gente trata a gravação como obra, mas também que a gente seleciona de uma maneira que te dá uma biblioteca bacana.

Com essa sobrecarga de informações, a curadoria acaba sendo muito importante.

DT: Exatamente. É isso que eu gostaria que a Supersônica fosse: uma boutique incrível de livros. Qualquer um deles vai ter sido preciosamente escolhido e preciosamente realizado.

Quanto aos atores, como é feita a seleção?

DT: É um casting tradicional, só que, no lugar de ser para fazer um filme, é para ser o narrador. Quando eu li o primeiro livro eu falei “gente, isso é a Bel”, sabe? Essa mulher segura de si, essa mulher que é centrada, mas, ao mesmo tempo, interessada e observadora e curiosa. Achei que funcionava com ela. Elenco é sempre um mistério. Mas, quando você acerta, fica óbvio. Por exemplo, no começo a gente fez uma escolha bem, bem louca, e eu considero a nossa marca registrada. Tem um livro que a Maria considera o melhor livro da literatura brasileira, As Mulheres de Tijucopapo, da Marilene Felinto. E a Marilene é pernambucana, morou praticamente a vida adulta toda em São Paulo, mas é pernambucana, e o livro é sobre uma volta para Recife. E aí, em vez de a gente escolher alguém com sotaque carregado nordestino, a gente chamou a Roberta Estrela d’Alva, que é uma rapper, uma MC aqui de São Paulo. Imagina que tem um discurso interior, mas não com cara de pensamento, essa personagem está falando para si própria. E aí a gente arriscou com a Roberta, porque ela tem um sotaque carregadíssimo de paulistana, ela tem um calo na voz. É uma voz rascante que não é perfeita e eu gosto do defeito. Gosto que uma palavra saia um pouco fora de quadro, assim você sabe que aquela voz é de uma pessoa e não de uma máquina. Aí a gente fez, mas entrando em pânico. Felizmente, quando a gente mandou para ela, a reação foi linda. É como se o romance tivesse renascido para ela e eu gosto muito disso, do fato de ter tomado uma decisão arriscada assim. E acho que foi um dos dias mais felizes da vida da Maria quando ela finalmente ouviu o livro que ela mais ama com a leitura da Roberta.

Você falou de Dostoievski, Machado de Assis, Tolstói e por aí vai. O que mais vem pela frente pra Supersônica? 

DT: Queria que a gente virasse uma livraria inacreditável, uma boutique incrível de livros maravilhosos, com atores maravilhosos e que isso se transformasse em algo natural. Meu sonho é que os audiolivros ganhem cada vez mais espaço na vida das pessoas e que a gente, a Supersônica, possa oferecer um lugar como esse. Quero que sejamos, como aconteceu com a Mubi, essa garantia de entrar e sair com um livro maravilhoso que vai te dar uma experiência extraordinária.