#45Imaginação RadicalCulturaLiteratura

Omi Soro: Águas falam

por Will Braga

Todos os factótuns temporais, sem exceção, ouçam! Isto não é um teste! Favor se dirigirem ao seu ponto de salto! O Alto Conselho requisitou intervenção imediata! Múltiplas anomalias foram detectadas no fluxo contínuo do espaço-tempo!”

— Qual aventura nos espera? Ainda não fomos devidamente apresentados!

— Sou Ta’ziyah, “alma apaixonada”, mas pode me chamar de Ta’zi! Seu totem, a luz fragmentada de sua centelha dentro do seu mini-invólucro biosférico pessoal. Baixando e consultando dados da Central-Quil. Inventário da missão investigativa: colher pistas sobre o paradeiro da mulher que veste roupas com ornamentos reais e uma pluma de avestruz na cabeça; cobrir vestígios de um dirigível artefato veicular; evitar o colapso mundial pela sua descoberta. Localização e coordenadas espaço-temporais: Superuniverso Eyin, Universo Local Ilê-Ifê, Nilo Celeste, Orbe Aiye, linhas temporais 2020/2652, Brasil, latitude 8° 29’ 40” Sul, longitude 39° 18’ 1” Oeste e latitude 11° 17’ 60” Sul, longitude 41° 51’ 24” Oeste. Ao chegar em cada destino, reportar informações pelo memorando em arquivos de áudio e imagens telementais… Estarei à disposição. Me chame por comandos mentais ou por voz dizendo “Kapusulu Ta’zi”, e então materializo-me!

— Acredito que não tem nada de tão novo. No caminho descobrimos o resto. Wwooww Ffffllloooouuupp! 

Meu nome é Kamit, o autêntico africano, submetido à autoridade das leis da criação e o princípio da manutenção da ordem no universo. Aqui em 2952, sou um dos últimos “fluidores do tempo”, ligados a uma linhagem ancestral. O Grande Conselho requisitou meus serviços pois sou um dos raros “factótuns temporais” encontrado nestes quadrantes da galáxia.

Aprendi a transbordar para trás no tempo, por entre os passados ancestrais fluídos e remotos, ou para a frente, em futuros fluidos, alguns vigorosos, outros não. Aprendemos que o tempo é como a água, que flui no fluxo contínuo de correntes, indo em muitas direções.

Acessamos muitas linhas temporais através das chamadas “gotas de consciência”. Cada uma delas segue seu curso no rio da vida, até desaguar no Mar da Criação. Quando se viaja nesses espaços, o que fazemos é “olhar” bem de perto algumas dessas gotas de consciência e, ao tocá-las, vê-las se cristalizar como espelhos d’água translúcidos em que podemos nos ver refletidos. 

Omi soro! Águas falam! Assim, cada uma delas nos mostra um reflexo fractal de como parecemos ser em centenas de milhares de realidades paralelas. Ao mergulhar no espelho d’água, tomamos a personalidade do fractal da realidade alternativa escolhida.

Brasil, latitude: 8° 29’ 40” Sul, longitude: 39° 18’ 1” Oeste. Linha temporal: 2652

— Vamos ver o que temos aqui, o que dá para encontrar. Kapusulu Ta’zi! 

— Calibração quântica computacional… Calculando… Calibrando… Acessando espectros energéticos acumulados pelo inconsciente coletivo planetário. Dados relativamente corrompidos. Traduzindo e transmitindo do ecrã para a sua tela mental!

— Ah! Estava bom demais para ser verdade! Até parece que seria tão fácil assim! 

Meus olhos não acreditavam no que viam. Um deserto com a dimensão da histórica Inglaterra, no interior do Brasil, cobrindo regiões massivamente povoadas. 

O núcleo de desertificação no semiárido brasileiro fica nos entornos da antiga Cabrobó, em Pernambuco, situada ao nordeste das terras brasileiras, onde, no passado, se encontravam plantações irrigadas por torrenciais correntes a partir do antigo rio São Francisco.

Por que as águas secaram? Quem ou que teria provocado tal infortúnio? E como isso estaria conectado com o sumiço da mulher cujo nome ainda não sabemos? Eram muitas perguntas sem resposta.

— Kapusulu Ta’zi! Acesse a segunda coordenada geográfica em outra linha de tempo, mas para trás! Precisamos colher mais pistas com provas substanciais através de outros fatos históricos!

Realizando cálculos. Examinando rotas alternativas no fluxo de gotas conscientes… Conclusão com sucesso! A probabilidade de localizarmos evidências colaborativas em 2552 é de 91,8%. No entanto, devido à quantidade de anomalias e instabilidades no tempo escalar, eu diria que este salto é muito arriscado. O trajeto é muito comprido. Demanda grande impulso energético sincronizar com um fractal daquela realidade! 

— Eu dou conta! Sou um dos únicos fluidores capazes de atravessar o vasto Mar da Criação sem grandes dificuldades, meus ancestrais sentiriam orgulho. Vamos! Woow Ffflllooouupp! 

Brasil, latitude: 11° 17’ 60” Sul, longitude: 41° 51’ 24” Oeste. Linha temporal: 2552

— Kapusulu Ta’zi! Faça um mapeamento com diâmetro completo em um raio de mil quilômetros de distância! E nessas mesmas coordenadas busque lastros em outras linhas de tempo atrás! Busque por leituras energéticas deixadas por artefatos desconhecidos.

— Baixando informações. Alguns resquícios de dados localizados. A maioria das informações foram apagadas. A busca por fatos históricos em linhas de tempo anteriores a 2552 foram de alguma forma deletadas, aqui reside a origem da anomalia… Os sinais da leitura apontam para uma espécie de jarro feito por uma estranha cerâmica não pertencente a este tempo. Está localizada em uma região litorânea conhecida nos registros desta humanidade como praia, a cerca de 612 km de Irecê.

— Ta’zi, acione o teletransportador quântico, sincronize as coordenadas exatas e nos leve lá imediatamente! Shoouuple!

Outro núcleo de desertificação fica no interior das terras conhecidas em outros tempos como Bahia, e esse é repleto de paisagens homogêneas. Notou-se um avanço da desertificação a partir dos arredores do antigo município de Irecê.

De acordo com Ta’zi, tudo começou séculos atrás, depois de 2020, quando aqueles conhecidos como “tomadores da humanidade” passaram a derrubar a vegetação nativa da caatinga. 

Ao chegar na praia, atrás das encostas litorâneas, nos deparamos com estranhas inscrições em cerâmica num jarro completamente coberto pela areia, contendo dentro alguns papéis e ainda aquilo conhecido pelos humanos deste planeta como búzios, conchas e nzimbu. 

Através do banco de dados universal, Ta’zi descobriu a qual idioma pertencia aqueles escritos que reluziam em cores douradas refletidas pela luz do Sol, destacadas no vaso trabalhado em cerâmica artesanal, provindas de antigas realezas, que se perderam no tempo. 

O idioma era ancestral ao kemet hierático, uma escrita sacerdotal usada para arquivar documentos administrativos e científicos. Em um dos papéis, uma frase escrita com as letras de uma mão notadamente feminina nos chamou a atenção:

“Quem é paciente com uma concha de búzio terá um dia 2352 ou ainda milhares deles, como as estrelas que se somam nos céus noturnos”

— Espera aí! Kapusulu Ta’zi! Cruze os dados e busque por qualquer informação ou noticiários do planeta com as palavras-chave “conchas”, “búzios”, “artefatos” e “colapso mundial”! E trace paralelo entre anos de 2652 e 2352.

— Sincronizando dados. Sintonizando em ondas-frequências mais adequadas… Calculando… Recalibração estabelecida e concluída! Noticiários localizados em 24 de março de 2652 e 24 de março 2352… Transmitindo áudios e imagens pelo ecrã em projeção 5D.

24 de março de 2652: “Um grande marco na história nos faz refletir sobre as tantas perdas que já tivemos. Há exatamente três séculos as lembranças que carregamos conosco pesam em nossos corações. Aquela que ficou conhecida como a Gadamés brasileira hoje é um dos mais antigos assentamentos pré-saarianos do Brasil. A nossa ‘cidade oásis’, que guardava grandes descobertas e que revolucionou o mundo, é a mesma que trouxe um colapso global devido aos atritos entre as potências mundiais. A nossa ‘pérola do deserto’ será lembrada para sempre”.

24 de março de 2352: “As evidências arqueológicas sugerem se tratar de um búzio gigante com tecnologia de hiperpropulsão antigravitacional, por enquanto incompreensível para as autoridades. Ele estava submerso nas encostas do mar na Praia do Forte, localizada a 612 km de distância da cidade de Irecê, interior da antiga Bahia. Cálculos imprecisos de datação de carbono estimam que tenha muitas centenas de milhares de anos. Cientistas e arqueólogos de várias partes do mundo comemoram essa grande conquista como aquilo que nos ajudará a dar largos passos nos avanços tecnológicos na luta contra os ‘tomadores da humanidade’”.

— Kapusulu Ta’zi! Vamos traçar a rota para 14 de janeiro de 2352, meses antes da descoberta do dirigível artefato veicular! Sincronize as minhas gotas de consciências fractalizadas mais próximas destas coordenadas em que estamos!

— ZZZzzzzz… Shiiiuuu! Está feito, Kamit!

— Isso! Ótimo! Lá vamos nós! Wwwwooowww FFfffflllluuuiiiuuuuppp!

Brasil, latitude: 11° 17’ 60” Sul, longitude: 41° 51’ 24” Oeste. 14 de janeiro de 2352, 15h30

— Kapusulu Ta’zi! Kapusulu Ta’zi! Ué o que houve? Cadê você Ta’zi? 

— Reportando falha de conexão espectral. Zona neutra detectada. Possível limbo temporal. Estou a duas horas do ponto… E sem teletransportador! Quando eu mais preciso de você… Não acredito que terei que andar duas horas!

— Sinal frequencial localizado… Conexão segura restabelecida… Acionando teletransportador!

— Ufa, Ta’zi! Você me deu um grande susto! Vamos lá! Sshouuupp!

Ao chegar no ponto, algo surpreendente aconteceu. A telemetria quântica mediu uma afluência extraordinária de energia escalar produzida por aquilo que os meus olhos não conseguiam descrever, de tão lindo e enigmático que era: nos deparamos com um artefato ancestral no formato de um búzio gigante medindo 34 metros de diâmetro.

— Kapusulu Ta’zi! Examine a superfície externa do objeto a fim de entender seu funcionamento!

— A aderência superficial responde ao toque senciente, demonstrando ter consciência… Buscando formas de contato com este ser inteligente.

Havia uma fenda na parte de baixo da casca, semelhante a uma pupila negra iridescente sobreposta à superfície branca da concha, que, uma vez ativada, se abriu, permitindo a nossa entrada. Circulamos pelos interiores da nave e fomos conduzidos até uma cúpula de natureza orgânica. Foi quando avistamos uma criatura, uma mulher negra e nua, magnificente, com cabelos dreadlock, envolta por um casulo energético suspenso no ar e em posição fetal. Assim que percebeu nossa presença, ela abriu os olhos e falou conosco mentalmente:

— Olá, Kamit! Eu estava repousando por 900 mil anos em Duat, ligado a Nun, as águas do abismo primordial. Você me encontrou! Agora há esperança neste mundo… 

— Seria você aquela que estamos procurando há tempos?

— Eu sou Ma’at, conhecida como a mulher de pé ou sentada com um dos joelhos na terra e ornamentos de pluma de avestruz na cabeça… Mas a mesma terra antes molhada, propícia às sementes, para germinarem, crescerem e darem seus frutos, está sem vida, porque quase toda a água secou.

— Ma’at, me diga, como você resolverá esse problema do mundo, agora que despertou?

— Eu represento a ética e a ordem. Personifico a verdade, a justiça e a harmonia universal.

Ma’at rege as leis aplicadas ao todo, necessárias ao equilíbrio do universo e, sem ela, reina a desordem, o caos, a injustiça e a miséria. Ela disse que os búzios e as conchas de tamanhos variados são uma das grandes relíquias e heranças deixadas como presentes pelos ancestrais maiores, provindos de períodos muito remotos para concebermos com a razão comum. No entanto, muitos outros, de tamanhos semelhantes a este que nos cobre ou até mesmo de grandezas superiores, eram vistos como verdadeiras pérolas ornamentais, utilizadas em antiquíssimos reinos deste mundo e de outros por seres realmente muito gigantes.

As conchas foram feitas assim pelos arquitetos universais porque representam o corpo feminino com seus cortes arredondados e lembram a barriga da mulher grávida; assim, são um grande símbolo da fertilidade.

— Lá se vai Ma’at, em sua enorme concha de búzio! Bom trabalho, Ta’zi! Já podemos voltar para casa através de uma gota de consciência. Que os cursos dos rios da vida nos carreguem e nos levem e que possamos desaguar novamente no vasto Mar da Criação!