Carl Gustav Jung em frente ao Hospital Burghölzi, em Zurique, em 1909.
#49SonhoCultura

Sonhos não envelhecem

Tive um sonho na madrugada de 31 de março de 2022. Eu andava pela casa um tanto ansiosa, procurando minha bolsa. Quando a achei, abri a carteira e, dentro dela, não encontrei minha identidade. Acordei assustada, e logo senti o sorriso aliviado da compreensão, já que, a partir da manhã seguinte, eu não teria mais o contrato de trabalho ao qual tinha me associado nos últimos vinte anos. Senti também medo do tamanho da mudança que o sonho desenhava para meu entendimento.

Estaria, então, livre para sonhar novas formas, encontrar novas imagens, compreendê-las e, ainda, simultaneamente, me permitir não as decifrar, observá-las sem pressa, vê-las ganhar significados e ressignificados inéditos com o tempo. Na manhã seguinte, eu poderia sonhar acordada com a nova vida que desejaria construir e experimentar. Com uma nova identidade.

“De onde vem a canção?”, canta Lenine. É comum nos perguntarmos quase todas as manhãs, ou madrugadas, de onde vêm os sonhos com aquelas mais encantadoras, assustadoras e bizarras imagens, conexões e desconexões.

Carl Gustav Jung (1875-1961), considerado pela revista Time o maior pensador do século em capa de 1955, afirma que os sonhos são expressões do inconsciente. Poço inato e infinito de histórias e significados — coletivos, familiares e pessoais.

Vale aqui diferenciar o conceito de inconsciente freudiano do junguiano, um dos aspectos responsáveis pela cisão dos pensadores, depois de um período de cerca de cinco anos de trabalho em conjunto.

Se, para Freud, o inconsciente é um depositário de aspectos reprimidos da personalidade, no qual é guardado tudo aquilo que não se sustenta na consciência, para Jung, o inconsciente é a origem de tudo, até mesmo da consciência.

Não à toa, no primeiro parágrafo de sua autobiografia, Memórias, sonhos e reflexões, escrita nos últimos anos de vida em parceria com a colaboradora Aniela Jaffé e publicada após sua morte, o pensador sintetiza, de uma só vez, sua experiência e fé: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade”.

A análise junguiana convida, de diversas formas, o interessado ao diálogo com informações inconscientes: por meio da ampliação dos sonhos (repare: ampliação, e não interpretação), da associação das palavras, das expressões simbólicas (técnica usada pela psiquiatra brasileira Nise da Silveira em contraponto aos eletrochoques no tratamento de pacientes esquizofrênicos) e da atenção e do significado às sincronicidades.

Como num sonho recorrente, vale a pena repetir: “De onde vem a canção?”.

No prefácio brasileiro de Uma investigação sobre a imagem, de James Hillman, o escritor e psicólogo Gustavo Barcellos propõe que as imagens oníricas precisam de respostas imaginativas, e não de explicação. Ousemos aqui, então, mergulhar com palavras nesse mar sem fundo do qual os sonhos emergem.

Hillman faz uma analogia que, em mim, ecoa sem, felizmente, encontrar contorno: “(…) os cheiros não podem ser evocados. Embora eles possam evocar lembranças de coisas passadas, não podemos recordá-los intencionalmente, assim como poderíamos recordar uma sala ou uma música. Estamos sujeitos a eles, somos assaltados por eles, transportados para seu mundo”. O autor segue: “A espontaneidade sem ego do cheiro é similar àquela da imaginação”.

Para mim, esse é um bom jeito de descrever sonhos pela perspectiva junguiana, pelo faro, pelas possibilidades infinitas, abandonando qualquer ideia materialista ou redutiva causal e ainda, ao mesmo tempo, considerando que o sonho pode ser, sim, consequência de um episódio vivido na vigília. Seu entendimento, porém, não deve ser reduzido ao fato.

Se dispostos a embarcar nesse convite de diálogo com o inconsciente, sem o desejo estreito de enquadrar as imagens, a ampliação dos sonhos pode virar um exercício diário de encontro consigo mesmo, com a possibilidade de sonhar, de imaginar a vida em muitas dimensões e de responder à vida com imagens, poesia, música, ficção. Com arte.

O analista junguiano Waldemar Magaldi explica, em inúmeras aulas, textos e vídeos do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), que os sonhos podem ser ampliados a partir de três diferentes perspectivas: a compensatória, a pedagógica ou a antecipadora de tendências, de transformação (que vulgar e equivocadamente chamamos de premonitória). Esta última talvez seja a mais fascinante e amedrontadora das possibilidades.

O sonho da identidade desaparecida da carteira pode ser ampliado a partir da perspectiva dos sonhos pedagógicos. Observemos, então, as demais possibilidades.

A tônica do pensamento junguiano contempla a integração dos opostos. Dor e prazer, luz e sombra, bem e mal. Não há, na origem dessas potencialidades, diferenciação de valor. Todo oposto é complementar e precisa existir na mesma proporção, em busca do equilíbrio. Por isso, quando uma experiência é unilateralizada, seja no indivíduo ou na sociedade, há, em igual medida, o desenvolvimento de seu oposto complementar — a polarização política encontra aqui uma explicação.

No universo onírico, imagens compensatórias podem realizar aspectos impedidos de serem vividos na vigília. Ofereço mais um encontro despudorado com imagens que me assaltaram para ampliação: andava às voltas com questões complexas com um parente, que não se mostrava aberto para receber o apoio que eu estava disposta a dar, porém com o qual eu deveria, moralmente, colaborar.

Por semanas refleti sobre essas questões, afirmando que estava surpresa por não sentir raiva da situação, lidando com tudo (embora fossem assuntos chatíssimos) de forma objetiva e até leve. Eis que a seguinte cena me acorda de sobressalto no meio da noite: esfaqueio o parente pelas costas, giro a faca encravada em sua carne e ainda olho para ver se o sangue está mesmo jorrando.

Já que, felizmente, eu não fiz isso tudo na vigília, a compensação inconsciente aconteceu no sonho. Desta forma, minha psique integrou a compaixão das ações concretas ao horror da raiva inconsciente. E, ufa!, me livrou de anos de cadeia!

De olhos bem abertos, pude dar mais limites às tentativas de ajudar, me respeitando e incluindo o oposto complementar (nesse caso, a raiva) que, de uma forma ou de outra, merece se manifestar. Pude, também, aprender a respeitar o desejo do outro de não ser ajudado.

Jung inspira seus estudiosos a compartilhar a própria biografia e aspectos psíquicos pois ele mesmo foi um empirista acima de tudo. As mais de vinte mil páginas que escreveu tiveram origem, essencialmente, em sua experiência pessoal com o inconsciente. Ele descreveu tais experiências em livros lançados apenas após sua morte: os Livros negros e o Livro vermelho. Neste último, o autor revisa as anotações de sonhos e imaginações dos primeiros e acrescenta desenhos criados a partir das imagens que o invadiram diretamente do inconsciente.

Quando já havia chegado à criação da psicologia profunda, que depois foi chamada de analítica, tendo o caminho da individuação como meta a ser percorrida pelo indivíduo na realização do arquétipo do si mesmo (assunto para muitos outros ensaios), Jung passou a ter sonhos repetitivos com alquimistas. Como, para ele, os sonhos eram expressões que mereciam toda atenção e respeito, passou a comprar e traduzir manuais de alquimia. Ele então compreendeu, com o passar de anos de estudo, que o caminho da individuação era a realização, na psique e na vida, do grande objetivo alquímico: simbolicamente, transformar chumbo em outro.

Jung reafirmou, então, com os conceitos da alquimia, o que sentiu no estudo de si mesmo: ao longo da vida humana, é necessário passar por diferentes fases, assim como no processo alquímico. Todos nós, em algum momento, especialmente após a metade da vida, somos convidados a entrar num processo de transformação de si, de criação de uma “tintura-mestre”, uma sabedoria capaz de existir como essência, servir a si mesmo e ao mundo.

O processo da alquimia parte da calcinação, quando estamos, do ponto de vista emocional, cristalizados em formas de existir e de sofrer. Para sair desse estado, precisamos passar para a sublimação, acrescentando ar, ou seja, pensamento sobre o que estava cristalizado. Tal processo resulta num líquido, torna-se uma solução e pode ganhar novas formas. Para se obter ainda mais pureza, o líquido pode passar pela fermentação, quando aspectos que ainda precisam se transformar o fazem pela morte, pela putrefação. O material fermentado pode, então, ser destilado, quando mais impurezas evaporam, e depois é novamente coagulado. Com a matéria mais purificada pode-se, enfim, criar a tintura-mestre, o essencial, o ouro.

Eu ando sonhando com gestações, partos, animais selvagens que se metamorfoseiam. Ando sonhando com arrepios causados por uma respiração delicada que percorre da minha bochecha à orelha. Seriam prenúncios de novas possibilidades, depois daquele sonho em 2022?

“A vida tem que ser conquistada sempre e de novo”, disse Jung.

Milton Nascimento e Lô Borges disseram que os sonhos não envelhecem. Que basta contar compasso, contar consigo, que a chama não tem pavio.

Que os sonhos possam inspirar nossos processos de desenvolvimento pessoal, de transformação, de expansão da consciência. Que possam ser recebidos como sussurros de sabedoria das almas a cada nova manhã!