#42ÁguaEditorial

Porque no princípio era a água

Patrícia Furtado é a editora convidada da edição Amarello Água.

ÁGUA foi a primeira palavra que falei na minha vida, antes mesmo de dizer “papai” ou “mamãe”. Estava no colo da minha mãe, apontando para um lago, pedindo para ir até lá. 

Sempre voltei meus olhos para as águas, sempre caminhei até elas movida por uma inexplicável atração, atravessando sua pele em rios, lagos e mares como um fantasma que atravessa paredes, como Alice que atravessa o espelho. Sempre amei olhar para o alto e deixar que suas gotas deslizassem por todo o meu corpo em banhos de chuva, cachoeira ou chuveiro. Aí são elas que me mergulham, descendo poros adentro e indo ao encontro das minhas águas.

Salgada ou doce, domesticada ou livre, esteja onde estiver, ela sempre foi a verdadeira direção da minha vida. Sabe quando você ama algo ou alguém e quer que outras pessoas também sintam esse amor? Por isso fundei a Acqua Mater, para convidar os outros a compartilharem esse canto-dança comigo.

E agora cá estou eu, como editora convidada da edição Água da Revista Amarello, para conduzi-los nessa “Expedição”.

Seus olhos, como um barco que flui, aportarão em várias cidades ao longo deste rio de páginas. Cada texto, um porto. Cada imagem, um panorama. Acessos a novos mundos, a um novo olhar sobre a Água. Nunca definitivo, nunca totalizante. Apenas uma fresta, pois a água não se deixa aprisionar. Para manter-se em vida, para gerar vida, ela precisa correr e transformar-se, mudando de estado quantas mais vezes a ciência for capaz – ou incapaz – de descobrir, neste e em outros planetas. 

Portanto, adentrem cada universo que nossos autores nos trazem como se fosse uma antessala. Penetrem os portais, depois avancem por si mesmos, pois todas as águas são férteis e chegam antes de nós. Abrem caminho.

Aqui, temos uma breve seleção temática que lança pistas sobre como enxergar a água sob novos prismas, porque ela não é só verde ou azul. Atravessada pelo sol, é o arco-íris inteiro sem confins definidos entre suas muitas manchas de cor. 

Escrevo esse texto do sertão baiano, de uma cidade chamada Ipirá, que em tupi-guarani significa “rio de peixe” – embora nem sempre haja rio ou peixe por aqui. Apesar do nome, é uma região marcada pela aridez de terras desmatadas, nascentes desaparecidas e gente franzida que resiste à seca enquanto o sol desenha a história dos umbuzeiros no chão.

Da minha janela, vejo pés de algaroba e de jurema, mandacarus, palmas, cabras, cavalos, vacas. Passarinhos fazem coro aos quero-queros, ou “espanta-boiada”, como são mais conhecidos por aqui. Ao meu lado, uma pequena fonte artificial jorra água, pois, na ausência do fluxo contínuo de rios que correm ou da chuva que chove, recrio paisagens aquáticas com o que tenho à disposição, para puxar emocionalmente pelo fio da memória e me sentir mais próxima às águas das minhas origens. 

Porque aqui os rios secam, a chuva é passageira e o sol é morador. Porque dia feliz, no sertão, é quando “tá bonito pra chover”.

Tem vida no sertão. Tem água!

Mas na esperança de mais vida, espera-se por mais água. 

As águas daqui se escondem em tudo o que transpira: na gente, nos outros bichos, nos mandacarus, nas barrigudas, nas batatas dos umbuzeiros. Escondem-se debaixo da pele da terra, nas nuvens do céu. O sertão ensina a gente a olhar para além da superfície irrigada das coisas. 

Porque tem a água que se deixa olhar, e tem a água que se esconde. Tem a água que enxarca e inunda, e tem a água que não há. 

Sim, o sertão um dia foi mar. Essas terras hoje empoeiradas abrigam, ainda que invisíveis aos nossos olhos, búzios, conchas, fósseis de ouriços e de outros vertebrados e invertebrados de água salgada – assim como o Monte Everest ou as altas montanhas do Grand Canyon têm fosseis marinhos tatuados em suas carnes. 

O Oceano já cobriu toda a superfície desse planeta estranhamente chamado de Terra, quando o tempo ainda era Mistério, muito antes de a Pangeia parecer uma imensa ilha flutuando nas águas do velho Pantalassa. 

O título “Porque no princípio era a água” veio-me à cabeça quando ainda escrevia esse texto e queria que ele transbordasse das margens do papel. Tales de Mileto soprava em meu ouvido: “A Água é a origem de todas as coisas”! Sem hesitar, acolhi o chamado e lancei a isca nas águas virtuais da internet. Pesquei um texto de Jacyntho Brandão, professor de Língua e Literatura Grega da UFMG, intitulado “No princípio era a água”. Ele conta que tradições gregas e hebraicas se inspiraram em cosmogonias babilônicas que instituem a água como o princípio de tudo, tanto que, num poema escrito, provavelmente, no século XII a.C., a água das fontes e a água do mar são apresentadas como os primeiros deuses.

Antes que vocês sigam viagem rio a baixo, queria lembrá-los de que somos atravessados pela água o tempo todo, tanto que integramos o ciclo natural hídrico e inventamos um ciclo artificial da água para fazê-la chegar às torneiras de nossas casas. E toda essa água é sempre a mesma água, porque a quantidade de suas moléculas circulando em nosso planeta é a mesma desde a noite dos tempos. Reciclam-se continuamente, em toda parte, de toda forma. A água que você bebeu hoje pode ter envelopado um bebê tiranossauro ainda dentro do ovo. Moléculas de água dentro de você podem já ter sido nuvem, gelo, oceano, suor ou lágrima de animais, ou plantas que já não estão mais entre nós. As águas ficam e guardam memórias.

Para que não se esqueçam disso, lanço aqui uma garrafa ao mar. Dentro dela, um trecho de outro texto meu para levarem consigo durante essa Expedição:

Água é vida. Quando buscamos vida em outro planeta, buscamos água. Qualquer semente ou embrião só começa sua vida na água. Ela é o meio pelo qual a natureza existe e se sustenta, conectando todos os sistemas vivos e ligando o presente ao passado, e o passado ao futuro. Percebo uma espécie de fio de Ariadne que parte invisivelmente do meu umbigo e me liga à primeira célula viva do oceano primordial, atravessando as espirais do tempo e do espaço e me conectando ao início de tudo. E, na direção contrária, nesta travessia de trás para frente, esse fio acumula uma série de registros de vida que passam então a me pertencer. São essas águas do passado que chegam até mim, preenchem minhas células e se constituem como memória, deixam rastros indeléveis na minha psique, na zona mais profunda e obscura do meu inconsciente, e conectam a minha história à história de vocês – e também à história de toda a humanidade. Temos um passado comum, e é esse oceano de memórias que nos liga inexoravelmente uns aos outros. As águas que me atravessam e me habitam são as mesmas águas que atravessam e habitam cada um de vocês, são as águas do início e do fim de tudo, as águas do nascimento e da morte. O que pertence unicamente à nossa individualidade é apenas uma gota deste imenso oceano.

Quando uma mulher gera e pare um filho, ela permite que o mar das origens transborde em onda sobre a terra para irrigar um novo mundo. A continuidade da vida é esse oceano primordial que não para de jorrar em cada um de nós.

Nossos corpos são literalmente inundados: um feto humano de três meses possui uns 94% de água; um recém-nascido, entre 80% e 84%; um adulto, 60%, 65%; um idoso, 40%, 50%. Em nosso percurso vital, vamos perdendo as águas do corpo até secarmos definitivamente e virarmos, simplesmente, pó.

O tema da água, do oceano, não se esgotará nunca. A nós, curiosos, cabe indagar e mergulhar fundo até onde a escuridão inalcançável de seus abismos permite.