Tenho uma teoria íntima: as redes sociais transformaram profundamente a maneira como nos relacionamos, obviamente, mas essa transformação foi tão aguda que mudou a nossa relação com os espaços que costumamos ocupar. Me explicarei: sou um construtor de palcos. Espaços de convivência, pequenos aquários que servem de cenário para os dramas humanos acontecerem. Talvez esta seja a maior recompensa do meu trabalho: saber que pulsões de vida e morte são sustentadas pelo contexto que criei. Quantos bebês nasceram porque seus pais se conheceram em um dos meus lugares, e quantas vidas abreviadas tragicamente atrás de um volante depois de uma noitada. Não existe o morno: as intensidades estão todas ali.
Enfim, os clubes, ou a nova denominação deles, as “baladas” (termo abominável), nasceram sociais, espaços que aglutinavam em seu eixo pessoas com interesses em comum. Não farei uma genealogia dos clubes, basta dizer que, a partir da década de 1970 e, de maneira mais contundente, da de 1990, a música, não o espaço, passou a ser o eixo que enfeixava as pessoas: a música em si era a expressão de certa estética de existência, de uma maneira de ver o mundo e, nesse sentido, um importante vetor de cultura. Os iguais se encontravam na pista para ouvir um determinado DJ, e sair ou não acompanhado era um detalhe, sendo comum você sair sozinho e encontrar os seus na pista. Afinal, era pra isso que ela também existia: além de servir de um momento de escapismo, para afirmar determinadas maneiras de viver.
Esta maneira de afirmar sua existência exigia um segredo: ao descobrir um espaço, você o comunicava somente aos mais íntimos, àqueles que compartilhavam contigo a sua maneira de existir: quantas vezes lugares descobertos eram passados de boca a orelha, mão em concha, como segredos, seguido de um “não espalha”? Porque este lugar, pobre do dono, não era para todos: era para nós, para nós existirmos, para nós expressarmos nossa maneira muito peculiar de vivência. Forasteiros não eram bem-vindos: eles permitiam que o véu de sonho fosse rompido pelo mundo que a porta que dava pra rua ajudava a conter. A imagem clássica dos filmes de western vem à cabeça: os olhares todos dirigidos como balas contra aquele que irrompia pela porta do saloon sem ser convidado.
O segredo, quando passado adiante, criava um laço de gratidão. Fazia do doador um generoso, e criava no receptor uma nova responsabilidade, a de compartilhar dele apenas com aqueles que eram como nós. Ali se criava um pacto: esse é o lugar onde existiremos ora em diante. Isso fazia com que o lugar fosse ocupado apenas por alguns, sequestrado para a formação de identidades. Não era apenas ou tão somente um negócio, era um palco para determinadores atores sociais se apresentarem.
Mas tudo isso mudou em 2007, ou um pouco antes disso: passamos a operar as redes sociais como manifestos de existência: eu curto, logo existo. Manifestar através das redes sociais suas predileções, sejam elas as obras que te agradavam ou os lugares que você frequentava, era tão ou mais importante que frequentar ou fruir estas mesmas obras ou espaços. Curtir, termo tão anacrônico, passa a representar existir.
Daí que espaços que antes, por conta do segredo, tardavam meses para encher e se transformar em economicamente viáveis passaram a virar hits da noite para o dia. Não existia mais o segredo: um post de Instagram, um check-in de Foursquare ou Facebook, ou um tweet que compartilhasse o segredo de maneira exponencial faziam com que seus seguidores soubessem do mesmo e urgissem para compartilhar com seus seguidores o lugar que exprimia sua maneira de existir, e assim sucessivamente, em cadeia.
Fruir o espaço é uma preocupação de segunda ordem: primeiro se coleciona o registro amplificado pelas redes sociais para depois se pensar o que fazer com o lugar. Colecionar estes registros e usá-los como dardos contra os seus seguidores, algo como um “estou aqui, me inveje”, é uma obsessão no confessionário de existências em que se transformaram as redes. O que era impensável, quase apocalíptico há dez anos, o uso de coleiras eletrônicas que nos localizariam no tempo e no espaço, como vaticinou Deleuze em seu Sociedade de controle, hoje fazemos de bom grado.
Os espaços são descartáveis, reclamamos continuamente da falta do novo, da falta de um lugar para encontrar os nossos. Esta íntima relação entre o espaço e sua identidade nas redes sociais criou novos problemas para os mesmos, doces e amargos. Doces porque não é mais necessário esperar para um bom projeto se tornar economicamente viável, uma vez que ele encherá em tempo recorde. Amargos porque será rapidamente descartado, depois da massa confessar que ali esteve. Talvez seja o início de uma era de espaços temporários, fugidios, voláteis e transitórios, tão fugazes quanto suas curtidas.
A crise dos sete anos
por Facundo Guerra