Uma antiga história sem fim: por que a guerra?
Em um momento emblemático da História, no início da década de 1930, dois dos maiores pensadores do século XX, ninguém mais ninguém menos que Albert Einstein e Sigmund Freud, trocam cartas. O contexto: do sentimento predominante de que era necessário instaurar mecanismos para refrear ensejos belicosos entre as nações — algo advindo do período posterior à 1ª Guerra Mundial —, nasce o Tratado de Versalhes, que, aos olhos perspicazes de Einstein e Freud, já dava demonstrações de seus resultados negativos.
Era o duelo entre os Aliados e o Eixo se desenhando para quem não tivesse medo de enxergar. Com consequências adversas pairando no ar, um prenúncio lúgubre esperando para acontecer em toda a sua potência, uma nova guerra surgia no horizonte. Ironicamente, desaguar no mais letal conflito da história da humanidade ia na direção contrária aos objetivos iniciais do Tratado. A constatação de que os tempos não eram assim tão pacíficos leva Einstein a refletir sobre os porquês de cairmos com frequência na vala nefasta do conflito bélico, ainda que a humanidade se entenda em constante evolução. Se somos capazes de tanto, por que não conseguimos parar de guerrear?
Para aprofundar as reflexões e ampliar as portas da percepção, a convite da Liga das Nações e de seu Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, Einstein sugeriu a Freud uma troca de cartas em que cada um apresentaria seus próprios argumentos. Em se tratando de duas pessoas que não se satisfaziam com visões superficiais pré-fabricadas, obviamente a troca acabou levantando mais perguntas do que respostas — como toda boa reflexão.
A correspondência icônica mergulhou nas complexidades da paz mundial e das razões subjacentes aos embates globais, debruçando-se sobre a questão “Por que a guerra?”, que, de tão simples, ecoa com força redobrada. O questionamento leva a lugares intrincados, provando que de ingênuo ele não tem nada. Mais de 90 anos depois, na medida em que o mundo continua a se deparar com conflitos sangrentos sem uma solução imediata aparente — para citar alguns: Ucrânia e Rússia, Palestina e Israel, Armênia e Azerbaijão, turcos e curdos —, a questão presente nas cartas segue sendo de enorme relevância.
Einstein e Freud, a partir de suas diferentes áreas de especialização, buscaram compreender o âmago da faceta mais obscura da humanidade, aquela que é capaz de lançar bombas e obliterar vidas sem pensar duas vezes. Enquanto o físico defendeu a necessidade de uma autoridade mundial para evitar a devastação em massa, o pai da psicanálise explorou as raízes psicológicas da agressão humana. A correspondência deles lançou as bases para o pensamento que investiga as motivações por trás de conflitos armados, um tema que permanece urgentemente relevante (e sem resolução).
“Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra? É do conhecimento geral que, com o progresso da ciência de nossos dias, esse tema virou questão de vida ou morte para a civilização, tal como a conhecemos. Não obstante, apesar de todo o empenho demonstrado, todas as tentativas de solucioná-lo terminaram em lamentável fracasso.”
“Como pessoa isenta de preconceitos nacionalistas, pessoalmente vejo uma forma simples de abordar o aspecto superficial (isto é, administrativo) do problema: a instituição, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judiciário para arbitrar todo conflito que surja entre nações. Cada nação submeter-se-ia à obediência às ordens emanadas desse organismo legislativo, a recorrer às suas decisões em todos os litígios, a aceitar irrestritamente suas decisões e a pôr em prática todas as medidas que o tribunal considerasse necessárias para a execução de seus decretos.”
— Albert Einstein
É claro que o próprio físico questionou o que propunha, observando que “um tribunal é uma instituição humana que, em relação ao poder de que dispõe, é inadequada para fazer cumprir seus veredictos, está muito sujeito a ver suas decisões anuladas por pressões extrajudiciais.”
Em se tratando de guerra, nada é simples. Afinal, a equação aqui não pode ser exata. Olhando para o cenário geopolítico contemporâneo, muitos conflitos vêm à mente.
Os atritos em Donbass, na Ucrânia, e a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 desencadearam uma crise que persiste até hoje. A narrativa é complexa e, claro, tem raízes históricas, políticas e étnicas. Desde sua independência em 1991, as relações ucranianas com a Rússia nunca estiveram nos melhores termos. Após a deposição do presidente da Ucrânia Yanukovych no mesmo ano da anexação, o leste do país virou palco de episódios lamentáveis, com forças ucranianas combatendo separatistas pró-russos apoiados pela Rússia na região de Donetsk e Luhansk. O resultado? Sanções internacionais contra a Rússia e uma crise humanitária com muitos deslocados internos e refugiados. Apesar de vários acordos de cessar-fogo e negociações, o conflito continua intermitente, mantendo tensões significativas nas relações internacionais. O começo de 2022 foi especialmente traumático, com a invasão russa ocorrida no mês de fevereiro e se estendendo por muitos ataques. Novos capítulos vão sendo escritos, sempre com novas camadas de complexidade e violência.
Zelensky acabou por se tornar um queridinho do Ocidente e Putin piorou ainda mais sua imagem aos olhos do resto do mundo. Mas pouco importa a popularidade de um ou de outro, pois nada muda o fato de que o embate ameaça a paz mundial — se é que podemos usar o termo sem qualquer tipo de ironia — e ocasiona na morte de inúmeros civis. Com a constante participação dos Estados Unidos nesse tipo de conflito, movidos por interesses políticos declarados, surgem as manchetes que farejam o início de uma nova guerra mundial. No fim, por mais que se estude e se compreenda os argumentos de todos os lados, há alguma motivação que realmente se faça valer?
Por mais válida que seja uma causa, é difícil achar justificativas plausíveis para o extermínio de milhares.
São muitos os antagonismos que tocam no mesmo diapasão, como o confronto entre Armênia e Azerbaijão, trazido à tona novamente em 2020. Mais uma vez, as feridas históricas e as questões territoriais serviram como principais fatores desencadeantes. As memórias de guerras anteriores ainda assombram a região, perpetuando o ciclo de violência. Também cabe lembrar o conflito entre turcos e curdos, alimentado por desafios culturais, históricos e políticos. A busca por autonomia e o desejo de independência colidem com os interesses nacionais turcos, resultando em conflitos persistentes. Nesses e em tantos outros casos, quaisquer soluções parecem inviáveis.
O conflito entre Palestina e Israel é outra chaga persistente, cindindo por completo a opinião pública, que abraça a totalidade de um lado e faz vista grossa para o que eventualmente possa estar errado em uma atitude ou outra do lado ao qual se é simpatizante. Embora suas origens remontem a décadas de tensões e disputas territoriais, as animosidades entre Israel e Palestina parecem ter a habilidade de se renovar. Ou seja, os porquês por trás da persistência dessa luta requerem uma análise não só profunda mas também contínua. É um conflito de longa data, enraizado em anos e anos de pura tensão. Israel pleiteia o controle total de Jerusalém, a Palestina reivindica a autonomia de seu Estado aprovada pela ONU. Além disso, a questão dos assentamentos israelenses na Cisjordânia continua sendo um ponto de conflito. Eventos como a escalada de violência em maio de 2021 agravaram ainda mais as complicações, com confrontos em Jerusalém Oriental, ataques de foguetes de grupos palestinos em Gaza e ataques aéreos israelenses. Apesar dos esforços de mediação, as questões centrais permanecem sem solução, tornando a contenda um dos desafios mais persistentes e multiformes da geopolítica global.
Tomando esses contextos, pensemos nas seguintes passagens, tanto de Freud quanto de Einstein:
“As guerras somente serão evitadas com certeza, se a humanidade se unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de arbitrar todos os conflitos de interesses. Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a outra seria inútil.”
— Sigmund Freud
“Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas? Pode haver apenas uma resposta. É porque o homem encerra dentro de si um desejo de ódio e destruição. Em tempos normais, essa paixão existe em estado latente, emerge apenas em circunstâncias anormais: é, contudo, relativamente fácil despertá-la e elevá-la à potência de psicose coletiva. Talvez aí esteja o ponto crucial de todo o complexo de fatores que estamos considerando, um enigma que só um especialista na ciência dos instintos humanos pode resolver.”
— Albert Einstein
Seria o instinto de destruição capaz de sobrepujar toda e qualquer humanidade? As predileções emocionais e culturais certamente são. Einstein argumentou que a guerra era resultado da falta de controle político global, destacando a importância de um governo mundial para evitar conflitos em grande escala. Freud, por outro lado, explorou a natureza humana, desenterrando impulsos agressivos que precisavam ser canalizados de maneira mais construtiva. Quem verdadeiramente quer a guerra? A questão de classe está sempre presente em contextos bélicos, sendo que, é óbvio, as classes com menor poder aquisitivo tendem a sofrer mais. Nesse contexto, as palavras de Einstein e Freud ressoam em alto e bom som.
A correspondência histórica entre dois dos maiores pensadores do século XX nos lembra que, embora a guerra seja uma realidade persistente, a busca pela diplomacia e a compreensão das raízes dos conflitos devem permanecer no centro dos esforços para um mundo mais harmonioso.
“Em todo caso, como o senhor mesmo observou, não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.”
“E quanto tempo teremos de esperar até que o restante da humanidade também se torne pacifista? Não há como dizê-lo. Mas pode não ser utópico esperar que esses dois fatores, a atitude cultural e o justificado medo das consequências de uma guerra futura, venham a resultar, dentro de um tempo previsível, em que se ponha um término à ameaça de guerra.
Por quais caminhos ou por que atalhos isto se realizará, não podemos adivinhar. Mas uma coisa podemos dizer: tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra.”
—Sigmund Freud
Freud acreditava que o impulso agressivo fazia parte do nosso psiquismo e que era inerente à condição humana. Em sua visão, a paz era uma ilusão passageira, uma vez que os conflitos eram uma manifestação dos impulsos primitivos que residem em todos nós. A visão mais otimista de Einstein e a perspectiva mais sombria de Freud, juntas, oferecem um quadro detalhado do desafio global da paz. Curiosamente, o psicanalista morreria em 1939, pouco depois da Segunda Grande Guerra começar; ao passo que o físico viveria para ver o conflito inteiro acontecer, inclusive com uma bomba atômica sendo utilizada.
As guerras são manifestações extremas da condição humana, emergindo de um emaranhado de fatores que interagem entre si. São como choques de placas tectônicas nas quais tensões acumuladas ao longo do tempo finalmente encontram uma liberação explosiva. São o resultado de desavenças que não puderam ser resolvidas pacificamente, o acúmulo de nuvens escuras que antecipam uma tempestade.
Talvez não seja possível responder por que as guerras existem — se nem mesmo Freud e Einstein conseguiram, fica claro que a questão é cabeluda. Fato é que a paz, viável ou não, sempre que se pronunciou, o fez a partir da capacidade de resolver desentendimentos por meio do diálogo e do respeito mútuo. Lamentavelmente, essa realidade soa como um canto que se escuta à distância. Bem à distância.
Se vivos estivessem, o físico e o psicanalista seguiriam debatendo. Mas chegariam ao acordo de que existe a chance de vencer esse monstro que fica à espera na esquina, de maneira discreta mas notória, como uma ameaça constante.
Para que se apague a iminência da próxima guerra, um mínimo de esperança vem a calhar.