#17CulturaSociedade

Kali Yuga

por Thiago Blumenthal

Tempos sombrios os que vivemos, em que a luta da escuridão contra a luz parece intensificar-se a cada round. Há quem diga que a escuridão está por vencer, por ora; os mais pessimistas. E há aqueles que já notam leve vantagem da luz, para utilizar uma imagem da série True Detective, no diálogo entre os agentes Marty e Rust.

Para boa parte dos hindus, não há dúvida: são tempos pra lá de sinistros. Na terminologia das escrituras sagradas e fundadoras do hinduísmo, estamos em pleno auge da era de Kali Yuga, que pode ser traduzida ou como era do demônio Kali ou “era dos vícios”. Para os hindus, o mundo passa por quatro estágios muito bem definidos, sendo Kali Yuga o derradeiro; caos, discórdia, trevas.

O primeiro estágio é Satya Yuga, quando a humanidade e seus deuses (não são poucos, na tradição oriental) estão em perfeita harmonia. Durou mais de um milhão de anos e lamentavelmente chegou ao fim há muito tempo. Depois há um declínio moral e estrutural do mundo, com Treta Yuga (com as encarnações posteriores do deus Vishnu) e com Dvapara Yuga, quando Vishnu ganha uma nova coloração e o intelecto deixa de existir. Krishna retorna ao lar celestial e dá início ao período mais temido pelos hindus, representado pela deusa Kali.

Para um dos gurus mais célebres da Índia, Paramahansa Yogananda, ainda vivemos em Dvapara, o terceiro período. Para o sábio, que viveu entre os séculos XIX e XX, há um erro de interpretação na astronomia da Surya Sidantha, uma espécie de cosmogonia do mito hinduísta. Um otimista ou um matemático fervoroso e obcecado pela posição dos astros no céu? Um revolucionário, tal Cristo para o judaísmo, ou Calvino para o cristianismo? Fato é que sua proposta de leitura dos tempos é pouco aceita dentro da tradição e a praxe é aceitar nossas vidas tão frágeis sob domínio do mal, sob domínio de Kali.

Um dos principais e talvez mais assustadores atributos de Kali é o controle que tem sobre o tempo. Geralmente representada como uma figura negra (daí o seu nome, do sânscrito) ou, em concepções mais recentes, azul, eis uma deusa, dentro do enorme arcabouço mitológico hindu, que sem dúvida se associa à escuridão, em oposição a Shiva. Como Shiva conota a luz criadora do mundo, e Kali lhe é anterior, com a criação do tempo, esta sempre aparece sentada sobre o corpo de Shiva. Temos uma concepção parecida na criação da figura, presente na tradição judaico-cristã (em especial na cristã), de Lúcifer.

Tal qual Shiva, Lúcifer carrega em sua concepção dois polos de um mesmo princípio criador: o da destruição e o da transformação pela luz. Lúcifer é o anjo da manhã, uma imagem pela qual os textos do Novo Testamento têm interessante predileção. O livro Satã, uma biografia, do pesquisador Henry Ansgar Kelly, revela dados da Vulgata que podem assustar até o mais cristão dos leitores; como reagir, quando João, no livro mais misterioso da escatologia cristã, o Apocalipse, refere-se a Jesus como “estrela da manhã” (no original grego e na Vulgata, os termos heosphoros e lucifer respectivamente)? Inúmeros hinos e documentos da tradição católica dão conta da imagem do messias cristão como este anjo da manhã.

Como ter fé em algo em tempos tão tenebrosos? No que os judeus acreditaram quando foram pouco a pouco sendo dizimados, moral e fisicamente, diante da gelada máquina nazista entre as décadas de 1930 e 1940 na Europa? No que devo acreditar, a que ou a quem devo apegar-me no momento de angústia? Enxoto as imagens lúgubres, já dirá Graciliano Ramos, mas elas vão e voltam, sem vergonha. Esforço-me por desviar o pensamento dessas coisas. Não sou um rato, não quero ser um rato. Tento distrair-me olhando a rua.

Sobre a mesa, tenho alguns livros de consulta, com ilustrações das mais assustadoras. Vivemos sob trevas?, reflito. Duas da manhã e o vento sopra forte contra minha janela. E penso em quem tem mais força, se a luz do meu quarto ou a escuridão do céu lá fora.