Meu dente de leite está sujo, de Luísa Matsushita. Imagem: cortesia Galeria Luisa Strina.
Sociedade

O que perdemos quando perdemos o foco

Não é necessário embarcar em muita abstração para vermos como o frenesi da era digital acarretou em uma aguda crise de atenção que permeia todos os aspectos das nossas vidas. Basta tomarmos as experiências pessoais como referência. Em um nível ou outro, seja você desta ou daquela faixa etária, seu nível de concentração não é igual ao que seria caso as distrações não fossem tantas. Cair no sono seria mais fácil, cumprir tarefas (domésticas ou profissionais) demandaria bem menos tempo, sentar para ver filmes ou ler livros seriam atividades consideravelmente menos heróicas. A era digital, com seu acesso imediato a dispositivos eletrônicos e mídias sociais, criou uma atmosfera de constante distração que debilita não apenas a nossa produtividade, mas também o nosso bem-estar. No fogo cruzado dos avanços tecnológicos e de uma profusão de informações verdadeiramente babélica, a habilidade de manter a concentração e o foco se tornou um desafio crescente em escalas micro e macro, afetando-nos enquanto indivíduos e enquanto corpos sociais. 

Como, então, controlar esse efeito sem que seja preciso se excluir do mundo?

Aproveitar o que esse aspecto hiperconectado da atualidade tem de bom, e conseguir não se afogar, seria o meio-termo ideal. Mas, enquanto o pêlo da nuca se arrepiar pelo pensamento aterrador de não conferir a notificação que acabou de chegar, a missão vai ser difícil. O imediatismo é uma demanda universal e, desde que bateu o ponto ao chegar para trabalhar, nunca mais largou a labuta. A multitarefa típica do que entendemos por digital — muitas vezes considerada valiosa — pode prejudicar a concentração, reduzindo a capacidade do cérebro de raciocinar em uma única tarefa por longos períodos ao mesmo tempo que rouba a eficiência das tarefas que são executadas de maneira concomitante. 

Se não nos concentramos nem diante daquilo que gostamos, o que isso faz de nós? Se estamos todos com as caras enfiadas no celular, como almejar por individualidades que nos definam? Estamos num estado de falsa produtividade, perseguindo debilmente os barulhos e vibrações que emanam dos celulares e computadores. Ainda que tais chamados não sejam atendidos, podem quebrar todo e qualquer fluxo de pensamento e, assim, diminuir a produtividade por vários minutos. Quando recobramos a atenção, coisa que somente com sorte chega a acontecer, uma nova notificação surge para nos derrubar novamente do cavalo.

De acordo com Johann Hari, autor do livro Stolen Focus, publicado em 2022, o típico trabalhador americano se concentra em uma determinada tarefa por apenas três minutos. E, em média, a cada dia nós tocamos ou verificamos nossos celulares mais de 2 mil vezes, além de gastarmos mais de três horas olhando para eles. Tarefas duram três minutos, enquanto viagens pelo celular se dão ao longo de milhares de toques, custando muitas horas diárias. Não à toa, fica quase impossível ler algumas páginas ou assistir a qualquer produção audiovisual sem que nossa atenção seja desviada. 

Além dos impactos na produtividade, a constante exposição a distrações digitais pode afetar negativamente a saúde mental. O estresse relacionado ao uso excessivo de dispositivos e à falta de concentração pode contribuir para a ansiedade e a sensação de sobrecarga. Mesmo quando não ouvimos os barulhos ou sentimos o aparelho vibrar, estamos sempre na expectativa da próxima novidade, fazendo com que, frequentemente, peguemos o celular gratuitamente, seja na esperança de nos deparar com uma notificação que não ouvimos, seja por mera força do hábito. Como pegamos o celular centenas de vezes ao dia, aquilo vira quase como um traquejo natural de nossa espécie — da mesma maneira que andamos de forma ereta e construímos edifícios cada vez mais altos. Há maneira melhor de usar nossos polegares opositores? 

Deixando a última pergunta de lado, vamos à outra: toda essa dificuldade de passar mais de três minutos fazendo algo, não seria tudo isso Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade? 

O TDAH é um tópico amplamente discutido e controverso nos dias de hoje, especialmente considerando a crescente dificuldade que enfrentamos para nos concentrar em tarefas diárias em um mundo cada vez mais repleto de distrações digitais — e a questão é outro ponto de discussão intrigante levantado por Hari em Stolen Focus

“De todos os tópicos do livro, este foi o que mais os cientistas que eu entrevistei discordaram. As evidências são muito claras de que existem algumas pessoas cujos genes as tornam um pouco mais vulneráveis a problemas de atenção. No entanto, a extensão em que esses problemas de atenção são causados pela biologia tem sido um tanto exagerada. Esta é a primeira sociedade humana que tentou fazer com que as crianças ficassem quietas durante oito horas por dia. Ninguém nunca fez isso antes porque é uma coisa absolutamente idiota de se fazer.

Então, acho que o diagnóstico de TDAH pode ser bom porque diz às crianças: ‘Isso não é culpa sua’. Mas acho que é prejudicial dar a eles uma história exclusivamente biológica, dizendo: ‘Isso é apenas um problema no seu cérebro’.”

Historicamente diagnosticado em crianças e adultos que exibiam sintomas como dificuldade de concentração, impulsividade e hiperatividade, o TDAH agora é colocado em um contexto mais amplo de atenção fragmentada. A abundância de estímulos pode tornar difícil manter o foco em uma única tarefa por longos períodos, algo que era mais comum em gerações passadas. Como resultado, muitos se perguntam se o TDAH não está mais para uma resposta adaptativa à nossa nova realidade digital. 

A complexidade do TDAH e sua relação com a sociedade moderna levam a uma série de debates e reflexões. É importante reconhecer que as dificuldades de concentração são uma preocupação generalizada, mas que nem todos que as experimentam têm TDAH. É crucial examinar o papel que o ambiente digital desempenha em nossa capacidade de concentração, pois, embora a tecnologia seja uma ferramenta poderosa, ela também pode ser uma fonte significativa de distração. Como sociedade, precisamos aprender a gerenciar nosso uso da tecnologia e a criar ambientes que favoreçam a atenção e o foco, independentemente do diagnóstico ou não de TDAH.

Naturalmente, as gerações nascidas nos anos 2000 estão no epicentro desse momento. É fácil imaginar o quão enraizada esteja a lógica digital em alguém que se desenvolveu justamente sobre essas bases, formadas na caldeira do caos contemporâneo. No entanto, mesmo aqueles que nasceram antes desse período também se veem jogados nesse mundo de distração. Talvez não sejam pessoas incapazes de desviar os olhos das dancinhas do TikTok e nem sejam pessoas viciadas em postar, postar e postar, mas, no fim, são igualmente dependentes das redes sociais e também as usam em larga quantidade. 

É o caso do próprio Johann Hari, na casa dos quarenta anos. Durante sua pesquisa para o livro Stolen Focus, tomou medidas drásticas para retomar o seu foco, isolando-se em Provincetown, uma vila em Massachusetts. Ele percebeu que sua capacidade de manter o foco estava em declínio e pôs em prática o plano radical de se desconectar de tudo. Apesar de bem-sucedido, de realmente ter conseguido sua concentração depois de três meses de isolamento, relata que, assim que voltou à vida normal, não demorou a retornar aos hábitos prévios e, antes que percebesse, estava com a concentração comprometida mais uma vez: 

“Houve muitos altos e baixos, mas fiquei surpreso com o quanto minha atenção voltou. Eu era capaz de ler livros oito horas por dia. No final do meu tempo por lá, eu pensei: ‘Eu nunca vou voltar a ser como eu vivia antes’. Os prazeres do foco são muito maiores do que as recompensas de curtidas e retuítes.”

A pandemia, é bem verdade, exacerbou esse problema. O estresse e a ansiedade levaram a uma constante sensação de vigilância, comprimindo a passagem dos dias em uma sequência turva pouco colorida e tornando a concentração um ato cada vez mais improvável. Além disso, nos tempos em que a COVID-19 nos forçou a ficar dentro de casa, a adoção de tecnologias e métodos de trabalho remoto foi acelerada, fazendo com que o desafio de manter o foco se transformasse em uma questão intergeracional, sendo impossível contornar o uso mais intenso de aparelhos. Mas há, afinal, uma alternativa? A proposta do autor é o que ele chama de “rebelião de atenção”. Passo um: reconhecer que nossa luta constante por atenção é influenciada não apenas por nossa força de vontade individual, mas também por fatores estruturais em nossa sociedade. Essa rebelião, portanto, começaria com a conscientização, ou seja, a compreensão de que a crise de atenção não é um problema pessoal, mas, como uma consequência das demandas da vida moderna, é algo que afeta todas as gerações. Daí adiante, refletir sobre qual é o melhor jeito para escapar das garras perniciosas da chuva de notificações. É concluir a partir do exercício de parar e pensar: eu não sou assim, esse eu que não consegue se concentrar é resultado do que estão fazendo de mim; e não, isso não está acontecendo apenas comigo, mas com todos que me circundam.

Muitos estão agora buscando maneiras de combater a crescente dificuldade de concentração. Estratégias incluem a prática de meditação, o estabelecimento de limites de tempo para o uso de dispositivos eletrônicos e a criação de ambientes de trabalho sem distrações. Reconhecer o problema e implementar estratégias para lidar com ele se tornou fundamental para a produtividade, a saúde mental e o bem-estar pessoal. Vai saber o que será do mundo de amanhã, certo? A tendência é que tudo se intensifique, então é melhor estarmos equipados mentalmente para o que vier. 

A crise de atenção é um problema de nossa época, mas também é uma oportunidade para refletir sobre o que realmente valorizamos na vida e sobre como podemos recuperar tudo aquilo que perdemos quando perdemos o foco — as miudezas, as especificidades e, em última análise, nossa humanidade. Como sociedade, é importante tomar medidas para preservar nossa atenção e manter vivo o que nos torna quem somos em um mundo cada vez mais conectado, que nos transforma em alvos amorfos de publicidade. Se você acha que está falhando porque não consegue se concentrar, saiba que, na verdade, isso está acontecendo com todos nós — e por grandes razões estruturais. A culpa não é sua (mas talvez o melhor seja não esperar a sentença do júri antes de começar sua fuga).

Na era do murmúrio, perdidos na cacofonia do virtual, nossas mentes vagam ao vento. Em um mundo de conexões instantâneas e notificações sem fim, a concentração se esvai e se torna quase inatingível. Com os olhos fixos nas telas, entregando-nos a esses ímãs de distração, perdemos o contato com o palpável: por uma boa parte do dia, esquecemos que estamos vivendo agora. Descobrir como chegar à introspecção quando a multitarefa nos consome é o que devemos almejar. Cada notícia, cada reel, cada meme, nos arrasta para longe do presente e a busca pela atenção plena parece uma batalha permanente. 

Mas, em meio a esse turbilhão de distrações, há um convite tímido à quietude, à contemplação, ao silêncio. Em um mundo que corre numa direção, por que não correr na contramão? Sem telas, celeumas ou brilhos que atacam os olhos. 

Em busca de um centro gravitacional, uma nova dimensão nos espera.