Maré revista (2021)
ArteArtes Visuais

Sujar de tinta: Mulambö e a arte de mergulhar no cotidiano

Vermelho, amarelo, preto e branco são as cores que predominam na produção de Mulambö (1995), jovem artista carioca, nascido e criado entre a Praia da Vila de Saquarema e São Gonçalo. “Nasci João e cresci Mulambö”, conta. A referência do nome artístico vem dos tempos de criança, quando passava o dia inteiro na rua, jogando bola e brincando. Ao voltar para casa todo sujo, ouvia da mãe que estava todo esmolambado. “Quando eu comecei com a produção que tenho hoje em dia e entendi o que eu estava fazendo e o que eu queria dizer, reassumi esse nome por justamente querer estar sujo de tinta, sujo por estar fazendo os trabalhos da mesma maneira que ficava quando brincava, com a mesma vivacidade, vontade e leveza”, afirma.

Seleção (2019)

Mulambö acerta na escolha de palavras: trabalhando sobre diferentes suportes e com técnicas diversas, suas obras pulsam uma energia vivaz, uma singularidade que se apresenta no tom de ironia, metáfora e certo humor que perpassa sua produção. Porém, sua obra não é feita apenas de prazer; pelo contrário, o resultado rapidamente se transforma pelas questões sociais, políticas e culturais que estão ali traduzidas através da arte.

Desigualdade social, racismo, corpo negro, marginalização, pobreza, discriminação, estratificação social são temas imprescindíveis que conformam o universo de sua poética. Ele retrata a realidade em que cresceu – sua, da família, dos amigos, dos seus pares e de sua cidade. É aqui que as cores utilizadas pelo artista ganham evidência: “As minhas cores surgem da ideia de placa de informação, placa de trânsito e, principalmente, da placa de ‘Perigo Correnteza’ que vemos nas praias. O que procuro com essas cores é um sentimento de urgência, de que preciso falar o que falo, como nessas placas, porque é uma informação que precisa ser captada de primeira. E é isso que quero para o meu trabalho, porque não temos mais tempo a perder, nossas histórias precisam ser ouvidas”. 

Utilizando materiais tão diversos quanto tijolos, vassouras, pás, pneus, giletes, arame farpado, bandeiras, madeira e papelão, o artista cria um repertório único que, se nasceu da necessidade, por não ter onde comprar materiais, transformou-se em escolha: utilizar materiais que estão próximos em diversos sentidos, utilizar a subjetividade dos próprios materiais encontrados para falar sobre si e sobre a sociedade. O resultado são obras que provocam no espectador uma tomada de consciência imediata. Os desenhos, esculturas e instalações surgem, de fato, como avisos, como se dissessem: “cuidado, racismo estrutural”, “atenção: zona de desigualdade”.

Orcas vivem mais quando têm avós (2021)

Em algumas obras, o recado é direto, como é o caso, por exemplo, da obra Entrada de Serviço, que consiste em uma placa homônima, instalada em três exposições distintas. Em 2019, na entrada do Centro de Artes da UFF; um ano depois, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage; e, em 2021, no IMS Paulista, por ocasião da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros. O objetivo é claro e transparente: inverter a ordem, transformar a porta principal da galeria em uma entrada de serviço. Já As dificuldade de manter os pés no chão (2019) consiste em um chinelo Havaianas comum, no qual as tiras foram substituídas por arame farpado. Em Queria um pincel, ganhei uma vassoura (2018), Mulambö transforma, com a pintura, uma vassoura em tridente. De objeto simbólico do lugar que a sociedade branca destinou – e muitas vezes ainda destina – aos negros, encarregados de serviços de manutenção e limpeza, a vassoura é transformada em instrumento para a resistência.

Entrada de serviço

Em outros trabalhos, como Disfarça e chora (2020), uma série de desenhos feitos em tinta acrílica sobre papelão, o que sobressai é uma poética visual sensível, que fala sobre força e resistência através do traço e das cores, restituindo, a partir da pintura, o direito de chorar àqueles que a sociedade impõe que baixem a cabeça e trabalhem, aguentem. Em G.R.E.S. e Saquarema, o que pulsa é a vivacidade da cultura: a cultura popular, o carnaval, a praia, a família. Cenas que simbolizam um dos muitos “Brasis” que temos em nosso país.

Vila Saquarema (2021)

O início da sua trajetória nas artes visuais foi marcado pela relação com o universo das histórias em quadrinhos e dos desenhos animados. Outro ponto importante, considerado pelo artista como formador de suas referências e fundador do seu olhar e poética, é justamente sua relação com o carnaval e, para além do evento em si, uma ideia de carnavalização. Conforme conta, a convivência com a escola de samba está presente em sua vida desde sempre: “A família de minha mãe vem de escola de samba, somos da Acadêmicos do Sossego, então essa paixão e essa forma de ver a vida me influencia para além do artista, em tudo que faço”.

Iemanjá (2021)

Sua trajetória, embora recente, é marcada por essa consciência precisa sobre a estruturação de um sistema que por muito tempo foi feito por brancos para brancos. Conforme escreve em seu livro homônimo, Mulambö,publicado digitalmente e disponível em seu site: “Pouca coisa mostra pra gente que nossos corpos são feitos para produzir pensamento, sensibilidade e presença, mesmo que a gente produza isso desde sempre”. Mulambö sistematizou seus objetivos e correu atrás dos seus interesses. Não desistiu até encontrar uma linguagem própria, através da qual conseguisse comunicar sua mensagem. Nesse percurso, encontrou pares como Carla Santana, Ana Bia Silva, Isabela Cabeço, Yhuri Cruz, Ana Clara Tito, Ana Almeida, Jota Mombaça, e lugares de produção descentralizados, afro-centrados e de origem suburbana, onde sua história encontrava ressonância. A partir dali, um primeiro projeto de exposição começou a ser gestado, e as coisas começaram a acontecer. 

Com pleno entendimento do papel da internet e das redes sociais para a promoção dos artistas hoje em dia, ele focou em produzir algo para aquele meio. E foram justamente seus desenhos digitais, publicados no Instagram e feitos sobre fotografias em preto e branco, apropriadas de outros fotógrafos, que chamaram atenção do professor e curador geral do Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), Marcelo Campos: “Quando conheci o Mulambö, fiquei bem impressionado com a obra dele e onde ele estava com as relações das imagens. Eram fotografias muitas vezes preexistentes, e ele então se apropriava dessas imagens e criava outros elementos. Criava intervenções, colocava cores, escrevia em cima das imagens, e isso dava um caráter muito original, muito singular ao trabalho dele, ao mesmo tempo que demonstrava uma relação muito direta com a ideia de uma representação mais popular, mas uma representação mais ampliada. Essas imagens, que pareciam ter uma espécie de comentário sobre o mundo de um modo muito dinâmico, me impressionaram bastante”, comenta ao se referir aos desenhos que compõem a série Xarpigrafias (2019).

A partir daí, veio o convite para o artista inaugurar uma nova galeria localizada dentro da biblioteca do MAR. Em 2019, Mulambö realizou Tudo nosso, sua primeira exposição individual. A mostra apresentou trabalhos de quase todas as fases do artista até ali, entre elas a série que era então a mais recente, Armas (2019). Um conjunto de pequenos desenhos feitos com guache sobre papelão. São personagens da vila, da praia, do carnaval. Corpos pretos com roupas brancas, sem rostos, munidos de seus objetos cotidianos, suas armas de resistência. Um conjunto de obras que deixava claro de onde vinha, com quem se comunicava e o quanto precisava ser ouvido.

Júlia Vermelha (2022)
Bandeira (2021)

Também faziam parte da exposição obras como Seleção (2018) e Arte preta tipo exportação (2019). A primeira, uma pintura em tinta acrílica e fita crepe sobre papelão, que retrata uma foto da infância do artista, com seus amigos, no time de futebol. Sem as faces aparentes, a fita crepe sobre os olhos veda ao mesmo tempo que anuncia qual foi o destino de cada um dos meninos: militar, traficante, pastor, PM, lutador, artista, modelo. Já Arte preta tipo exportação, uma pintura acrílica sobre juta, remete às sacas de café e a exploração dos corpos pretos como objetos, a comercialização dos corpos negros como se fossem mercadorias. “Esse é um trabalho sobre um lance que aprendi com a Jota Mombaça, que é a hipervisualização do corpo negro como objeto enquanto é invisibilizado como sujeito”, escreve Mulambö em seu site.

Para Campos, o trabalho de Mulambö tem uma característica muito própria na forma como ele, sendo carioca, retrata elementos da cultura local: “Ele exibe elementos que se ligam ao futebol, ao carnaval, à discussão em torno da cultura popular, mas, por outro lado, com muita consciência étnico-racial, e isso faz do trabalho dele um trabalho de mergulho, sobretudo de um profundo amor por discussões que estão vinculadas a uma espécie de Brasil mais profundo”, completa Campos.

Monumento (2021)

À exposição do MAR seguiram-se outras individuais, no Brasil e no exterior, bem como a participação em feiras, aberturas e exposições coletivas. Mas, como já anunciava na frase adesivada no chão da galeria do MAR – “Não tem museu no mundo como a casa da nossa vó” –, Mulambö reforça que a ascensão a um sistema consolidado das artes precisa necessariamente trazer um retorno para o lugar de onde ele vem. “A arte periférica nessa estrutura estabelecida nas artes chega como algo inevitável, mas que, ao mesmo tempo, sofre um apagamento muito grande. Para eles, é arte periférica apenas o que se encaixa nas expectativas deles. E eu entendo que meu trabalho se encaixa nisso de certa forma; é algo que eu fico constantemente pensando, como meu trabalho, meu corpo e minha história ocupam esses espaços. Tento sempre driblar a estrutura; em certos momentos, dar o que é esperado e, em outros, fazer projetos diferentes que me mantenham vivo e instigado a experimentar”, comenta. Seu interesse está também em levar arte e cultura para o lugar em que nasceu e cresceu, transformar outras vidas e mostrar para outras pessoas pretas, de origem suburbana, que arte e sensibilidade são um futuro possível, que outras histórias, parecidas com a dele, existem e precisam de espaço. “Meu movimento de estabelecer meu trabalho e produção em Saquarema, na casa da minha família, faz parte desse meu desejo”, completa.

É de lá que prepara sua próxima exposição individual, que será realizada no Instituto Pretos Novos, espaço localizado na Zona Portuária do Rio de Janeiro. “Depois de muita correria, aberturas, exposições e feiras de arte, essa exposição está vindo como um reencontro com meu trabalho, com o começo do meu trabalho, ao mesmo tempo que tento experimentar novas linguagens e coisas que nunca explorei antes. É justamente uma exposição onde vou poder experimentar livremente, graças à confiança que o espaço teve em mim”. A exposição está prevista para o segundo semestre de 2022.