Cena do filme Tudo o que respira.
Cinema

“Tudo o que respira”: a interferência do homem na natureza

O milhafre-preto é uma ave de rapina encontrada em regiões temperadas e tropicais da Europa, Ásia e África. Em média, tem uma envergadura de 1,5 a 1,7 metros e uma plumagem predominantemente marrom-escura. Seu nome em inglês — Black Kite (pipa preta) — se refere às pontas de suas asas, donas de uma coloração escura que se sobressai às outras quando os voos elegantes são alçados. Nos últimos tempos, a população de milhafre-pretos tem diminuído em muitas partes do mundo devido à perda de possíveis habitats e envenenamento por pesticidas. Geralmente, são carnívoros, ingerindo roedores, aves, répteis e insetos. No entanto, caso a oportunidade se apresente, também podem se alimentar de restos de animais ou até mesmo de… lixo.

Foto de Javed Dar/Xinhua | Getty Images

Situado na escura paisagem de toxicidade ambiental e social de Nova Delhi, capital da Índia, Tudo O Que Respira segue dois irmãos que dedicam suas vidas à proteção dos milhafres-pretos, surpreendentemente essenciais para que a cidade funcione com um mínimo de equilíbrio — se é que essa é a palavra certa. 

Uma das cidades mais populosas, povoadas e poluídas do planeta, Nova Delhi produz diariamente toneladas e mais toneladas de lixo. O cenário, portanto, não poderia ser mais emblemático: 11 milhões de habitantes, nevoeiros tóxicos no ar, partículas cancerígenas rondando em níveis alarmantes, lixo formando montanhas, espumas cobrindo os rios. Numa cadeia de sobrevivência torta em que a interferência dos humanos na natureza força as maiores bizarrices de adaptação, os milhafres-pretos sobrevoam graciosamente as pirâmides de lixo e consomem, despidos de qualquer graça, boa parte dessas toneladas. Se o prognóstico já seria pavoroso no atual estado das coisas, mesmo com essas quantidades substanciais de dejetos a menos, sabe-se lá o que seria desse frágil ecossistema sem a interferência dessas aves. Milhares de seres morrem ali anualmente em decorrência de tanta poluição, inclusive humanos, e os que sobrevivem foram obrigados a encontrar um jeito de se adaptar. 

A primeira das várias sequências deslumbrantes do documentário desconcertante de Shaunak Sen ilustra bem o espaço banal que o antinatural ocupa hoje no mundo moderno. Enquanto outros animais espreitam, o lixo na rua é cavoucado por ratos tão assustados quanto céleres. À medida que seu barulho faminto aumenta de volume, os faróis dos carros ficam mais brilhantes, desfocados e desinteressados: a humanidade, inconsequente e “ao fundo” de suas próprias criações, impactou a existência de todos os seres, dos homens aos ratos.

Como se fosse um prazeroso hobby, há tempos estamos destruindo habitats, cada época com seu modus operandi particular. A urbanização cada vez mais desenfreada avança sobre áreas naturais e, sob a desculpa do progresso (lê-se oportunidades comerciais), vai dizimando a flora que estiver no caminho e, numa só machadada, leva junto a fauna em que nela habita. E, então, de duas uma: ou a corajosa fauna dá um jeito de se adequar àquilo ou a vulnerável fauna há de, cedo ou tarde, cair em extinção, seja localmente seja como uma espécie inteira. No fim, somos eternos predadores, mesmo que não estejamos de arco e flecha em mãos. Nosso modo de agir carrega um extermínio inerente. 

Não por um acaso, em outra obra assinalada pela humanidade, a lógica do “ou vai, ou racha” também se aplica às mudanças climáticas, que tanto forçam mutações de organismo e geram novas constituições, muitas vezes fugindo completamente daquilo que seria tido como natural. Afinal, se um pinguim quiser sobreviver, que se acostume à vida sem, ou com menos, calotas polares. É nessa toada que “criamos” — no pior sentido da palavra — ratos resistentes a venenos, cujas entranhas foram obstinadas o suficiente para desenvolver uma defesa ao inimigo químico, e “produzimos” — no mais irônico sentido da palavra — mosquitos urbanos, também tolerantes aos repelentes tradicionais, insetos que sobrevivem em água de pneus e em outros recipientes de lixo. Se atualmente a União Internacional para a Conservação da Natureza, uma das principais ONGs ambientais do mundo, tem mais de 87 mil espécies em sua lista de ameaçadas de extinção, a conta parece estar pesando mais para o “racha”. 

No frenesi da capital da Índia, ou em muitas e muitas outras cidades ao redor do mundo, vê-se praticamente um cenário de mutantes. Tudo O Que Respira pinta um quadro vivo dessa realidade tão nauseabunda. 

Saud e Nadeem Shehzad, também produtos de um ecossistema em constante transição, são os irmãos que carregam a narrativa. No porão de casa, têm uma espécie de hospital veterinário improvisado com o fim de resgatar milhafres. Num bairro muçulmano da classe trabalhadora, os dois olham para as nuvens, e para as aves lá salpicadas, como uma fuga de seus arredores sufocantes, acreditando que cuidar delas, além de minimizar as suas próprias dificuldades, ainda lhes daria alguma forma de crédito religioso a ser descontado nos dias em que finalmente ascenderiam aos céus. Esses habitantes gentis e modestos de Nova Delhi dedicaram os últimos 20 anos de suas vidas tomando conta de milhafres-pretos, tratando mais de 20 mil deles. É nesses dois personagens de carne e osso que Tudo O Que Respira encontra uma exibição poética de um mundo naturalmente antinatural em que nem os humanos se salvaram de si mesmo. É como diz um deles: “Os humanos muitas vezes esquecem que também são pedaços de carne.”

Algumas imagens do filme parecem quase impossíveis, forjadas por CGI. Num momento, um grupo de insetos bebe de uma poça d’água em que se vê o reflexo de humanos passando; em outro, um bando de milhafres-pretos voam contra uma nuvem de fumaça, como se estivessem se afogando. A vida humana e a animal não estão divididas em uma cidade como Nova Delhi — tudo faz parte do mesmo quadro, e o filme de Sen o captura no auge de sua fragilidade fascinante. Tudo O Que Respira é avesso a qualquer tipo de manipulação e é, em si, uma adaptação do formato documental ao contexto atual não só da indústria cinematográfica, mas do mundo como um todo. 

Assim como os milhafre-pretos estão lutando contra o céu poluído, os irmãos que cuidam deles estão lutando contra injustiças que podem forçá-los a tombar das próprias nuvens. Como observadores de aves numa cidade como Nova Delhi, assistimos a tudo em quietude reverenciosa, num misto de desassossego e deslumbramento. Como um exercício de respiração que aumenta nossa sensibilidade ao presente, Tudo O Que Respira tem magia de transformação. 

Quem é o animal e quem é o humano?, nos perguntamos num anseio maior que nós, e nossas possibilidades, de promover mudanças. Ao mesmo tempo, aterrorizados e envolvidos demais, preferimos não saber a resposta.