Somos todos estrangeiros na ópera. Essa sensação de deslocamento, um certo torpor de ideias que temos ao acompanhar atores que não entendemos muito bem o que cantam, tudo isso é comum. Pois, contrário ao que possa parecer, a incompreensão não é predicado dos brasileiros: quando neófitos, um alemão que ouve Wagner, um italiano que ouve Donizetti ou um francês que ouve Gounod não entendem naturalmente todas as palavras que estão sendo cantadas. E afinal, o que nos faz mais estrangeiros que a falta de domínio do que a língua nos conta?
Não falo de incomunicabilidade, no entanto. Se é um clichê que a pátria é nossa língua, é por outro lado verdade que nossa língua é uma tecnologia. Essa tecnologia – especialíssima, sofisticadíssima – foi provavelmente criada no caos dos rumores primordiais até alcançar a significação ou identificação de balbucios como “mama” ou “papá” em sujeitos afetivos e seguir assombrosa e variada milênios depois, mesmo para adultos. Mas a língua primordial segue presente: ao final, o sentido extremo e radical é emocional – ele é o que comunica uma pessoa a outra, numa via cheia de tramas, jamais retilíneas.
Neste sentido é que devemos, permanentemente, conquistar por todo tempo a nossa pátria. E um pouco, neste trabalho de Bandeirantes, nos perdemos em discursos complexos em que, num mundo hiperconectado, nos chegam trechos incompletos, frases desconexas, palavras soltas eventualmente desprovidas de sentido ou de contextos semânticos. Uma telenovela. Um alaúde. Um trem. Uma arara. Esse é um elemento curioso na comunicação verbal: as peças podem até fazer sentido, mas a resultante última do significado de suas conexões quase sempre nos escapa. A metáfora de uma baía banguela, as agruras daqueles que falam às nossas costas algo cujo centro entendemos aos poucos, difusamente, estranhamente – são modos a partir dos quais a língua nos desafia.
É sempre assim na arte. E, mais do que tudo, é assim na música, seja ela uma canção, ária, obra instrumental ou ópera. O que se coloca diante de nossos ouvidos pode até ser entendido como algo coeso e significativo – no sentido de cheio de significados –, mas não necessariamente compreenderemos o que quer dizer. O que diz nosso interlocutor, ou o que pretende expressar o compositor, o que consegue comunicar seu intérprete (o meio) e o que canta a música (a mensagem) são coisas completamente diferentes. Um cantor de ópera canta palavras mais ou menos decifráveis, mas desmascaramos seu duplo som – aquele das palavras e da melodia – como que sampleados num Synclavier:
“Isso que ouves não ouves; e isso que queres ouvir é o que tentamos dizer. Mas não entenda, afogue-se nesta trama de sentidos, mergulhe no mar das sonoridades cujas emoções dizem mais que as palavras, pois é nele que elas habitam.”
E, entendendo, seguimos menos estrangeiros, entendendo um pouco mais o que afinal está sendo dito. A ópera é também essa metáfora de cores e sol que, um dia, do seu modo próprio, nos ajuda a desnudar a linguagem em seu sentido mais radical: aquele que lhe está na raiz. Com a ópera, podemos seguir nesse esforço de vida inteira, o de dominar sem dominar a nossa própria linguagem.
Leandro Oliveira é escritor, compositor e maestro. Trabalha como professor do Falando de Música da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo.