O fim do fim da História
1.
Berlim, 1917: em prisão militar, um búfalo deportado da Romênia como “espólio de guerra” move uma carroça com uniformes ensanguentados. Soldados estão mortos. Os uniformes, lavados e remendados, vestirão outros soldados que também morrerão na Grande Guerra. O búfalo, chicoteado pelo guarda (“ninguém tem pena de nós humanos”), olha para o nada com “olhos escuros” de um ser abusado. A prisioneira Rosa Luxemburgo vai às lágrimas. “Eram as lágrimas dele”, escreveu ela em carta a Sophie Liebknecht. Búfalo, uniformes sangrados, guardas violados e violentos eram o “panorama da guerra” aos olhos abertos, lacrimejados, de Rosa Luxemburgo.
2.
Berlim, 2024: de manhã, abro os olhos, desbloqueio meu iPhone. Vejo imagens do cavalo Caramelo, cascos e quartelas brancas suportando o peso do costado por quase quatro dias, o dorso marrom na telha ilhada, a água densa acuando o bicho esgotado. No Caramelo, vejo mais que instinto de sobrevivência. Vejo mais que uma vítima da enchente de 24 no Rio Grande do Sul. Vejo o panorama do fim do fim da história.
3.
Fim da História: lendas sobre Messias e Juízo Final falam em evento depois do qual a sociedade mudará essencialmente. Mesmo no mundo “desencantado” da ciência e da materialidade do presente, o tempo continuou a ser visto como portador de sentido por olhos que veem na História com H uma marcha inexorável. Como a semente que se completa na flor, a história se realizaria no seu fim em duplo sentido, finalidade e término. Sociedade sem classes, progresso técnico, paz perpétua: seja qual fosse o conteúdo, a história teria último capítulo.
4.
Berlim, 1933: agentes do destino racial prendem Hannah Arendt. Depois, refugiada em Nova York, a autora criticaria fatalismos que postulam “leis” históricas irresistíveis às quais humanos devem se adaptar. Saída do abismo dos 1940, Arendt escreveu: a história não é “processo com monopólio de universalidade e significação”. História é um monte de estórias vividas, vistas, lembradas, discutidas.
5.
Rosa Luxemburgo, presa por discutir o sistema no qual vivia, e Karl Liebknecht, único parlamentar a votar contra o orçamento de guerra, denunciaram a desmesura imperialista e ideias que convenciam trabalhadores alemães a matar trabalhadores franceses. Em 1915, trens com soldados não partiam mais sob acenos de noivas emocionadas. Igrejas viravam “estábulo de cavalos”. Populações mendigavam. “O espetáculo acabou”, Luxemburgo disse. A sociedade burguesa, “pingando sujeira”, estava em “forma nua”, sem os vestidos da ordem, da ética, do direito etc. Dessa sociedade, Luxemburgo não esperava nada novo. Ela esperava dos trabalhadores, açoitados, que veriam na “experiência histórica” uma “professora”.
6.
Porto Alegre, 1991: sentado em frente à TV, torrada de presunto e Nescau nas mãos, assisto ao Pedro Bial, sentado também, parlamento russo às costas: “estou moído, minha cabeça e meu corpo estão exaustos, mas meus olhos não se cansam de ver a história”.
7.
Em 1919, Luxemburgo foi apunhalada, atirada no rio, não pela história, mas por milicianos Freikorps sob vista grossa da social-democracia. Kurt Tucholsky protestou contra a falta de protesto. Acusou a “velha dança” militar e celebrou a coragem da mulher assassinada (“quão rara”). A salvação, Tucholsky disse, não se encontrava nas ruas, no povo.
Uma década depois, com apoio do povo ao racismo apresentado aos gritos em cervejarias bávaras, Leon Trotsky tentou compreender como a história, após Hegel e Marx, tinha produzido o “materialismo zoológico” de Hitler, Hess e Rosenberg, o “delírio” do império que aniquilaria o tempo (“mil anos”), sem teoria econômica, apenas com “excrementos culturais” regurgitados e vomitados pela garganta de agitadores. A história seria guiada por um barbarismo não digerido.
8.
Sozinho, Walter Benjamin, antes de sair do tempo histórico em Portbou, criticou a “barbárie” no útero da sociedade que tinha gestado Verdun e bombardeiros, e não conseguia ver o lado negativo do avanço material (“desastrosa recepção da técnica”). Essa sociedade se deixava arrastar pela “tempestade” do progresso.
9.
Nas notas do iPhone, eu rascunho o panfleto A vitória do showcialismo. Diferente do previsto por materialistas dialéticos, a modernidade não resolveu suas contradições na vitória do socialismo, mas as aguçou (conectividade/solidão, ciência/fake news, globalização/neonacionalismo). Agora cada um tem um Pravda digital para chamar de seu e socializar fragmentos de vidas alienadas.
10.
Berlim, 1989: troços do Muro são arrancados, no que parecia ser o último ato. Nas ruínas do fascismo e do nazismo, a Europa tinha se dividido em dois sistemas: capitalismo versus socialismo. Chris Gueffroy, morto, ao saltar no muro, por vinte e dois tiros dos soldados da RDA, queria viajar aos Estados Unidos. Visafrei bis Hawaii – manifestantes pediam liberdade de opinião e de movimento (“até o Havaí”). Dissidentes e a história pareciam caminhar, fugir, na mesma direção, a da democracia liberal capitalista. Alemães orientais, como Žižek diria em 1998, foram de opositores “heroicos” a consumidores de “bananas e pornografia barata”. Em o Fim da história e o último homem, Francis Fukuyama afirmou que a história intelectual tinha, sim, chegado ao clímax, com a democracia consolidada como melhor sistema para oferecer liberdade, igualdade e reconhecimento. E bananas.
11.
Com o copo de Nescau na mão e o Bial na TV, eu assistia a um ato triplamente simbólico: nossos olhos olhavam a história; olhávamos a história chegando ao fim; eu, apartamento na 24 de Outubro, torrada, achocolatado, videogame, direitos fundamentais em estado liberal tropical, sentia o fim da história em mim – eu era o “último homem”, ou o último guri de apartamento.
Ainda assim, perguntado o que eu “queria ser” na minha história pessoal, eu respondia, correspondente estrangeiro. Queria ver a história. Queria viajar a cantos onde o extraordinário, fora do tempo democrático, ainda insistia em acontecer – como se no meu Brasil não existisse mais história. O meu Brasil, a minha Porto Alegre eram uma bolinha de vidro onde a vida seguiria roteiro cíclico (universidade, trabalho, família) num tempo político acabado. Um ano depois, Fukuyama classificaria o Brasil com um dos países “pós-históricos”.
12.
Hoje, não moro em Porto Alegre. Moro em Neukölln, Berlim. Segui minha história pessoal colocando-me no proletariado estrangeiro (vestido de freelancer). Na pós-graduação como guia de turismo, trafico a turistas troços da obra de Arendt, “questões alemãs” e visões fatalistas. Na linha do U8, escuto Berlim, Bom Fim. Penso na queda do Muro de Berlim, no aumento do Muro da Mauá, não mais “vergonhoso”. Penso em Porto Alegre, na Estação de Tratamento de Águas Moinhos de Vento, penso em Muçum e no Sarandi, na minha irmã evacuada do Humaitá, na tempestade de areia em Beijing, no ciclone em Myanmar, no calor cada vez mais quente no Chile, na Europa, na Ásia. Penso nas direções contraditórias da história, estórias, sentidos confusos, pulverizados num tempo que, em vez de parar, acelerou. Entre vendavais de areia, vejo explosões: olho para Kharkiv, Crimeia, Be’eri, Rafah, e vejo os séculos XII e XIX armarem barracas militares no século XXI. Vejo estupros ideologicamente motivados e a banalidade de bombas guiadas por GPS (“errando” o alvo) e penso que história não acabou nem vai acabar.
Eu leio restos de história arruinada nas linhas de Benjamin, profeta negativo, para quem memórias viram “flashes em momento de perigo”. O momento é de perigo. A história, lida por olhos modernistas “relutantes”, não ensina, não é professora, mas recomenda ficar alerta.
13.
Cansado, fecho o Fim da história e abro Ressentimentos, em que Jean Améry pede que “feridas” históricas não cicatrizem. A secreção de injustiça, da irracionalidade vira lembrança da responsabilidade humana. “O poder moral de resistir contém o protesto, a revolta contra a realidade, que só é racional se for moral”. Crimes contra povos, culturas, ecossistemas devem ser lembrados como eventos acontecidos que não deviam ter acontecido.
14.
O homem “agiu na natureza” (Arendt), tornando chuvas, ventos e níveis de rios agentes ingovernáveis. A história natural invadiu a história humana, potencializando o imprevisível. O domínio da natureza se realizou na natureza descontrolada, história sem rumo, sem sonho nem utopia, sem novos princípios. No fim do fim da história, fronteiras nacionais e muros mentais continuam em pé, mas linhas entre natureza e artifício seguem desmoronando. E a distância entre poesia e realidade foi abolida: Quer morrer no mar. Mas o mar secou.
15.
“Os negócios”, Rosa Luxemburgo escreveu em 1915, “prosperam nas ruínas”.
16.
O fim do fim da história: a história não tem fim, e o melhor sistema é o sistema no qual os olhos, ainda que cansados, estejam abertos. Estórias terminam, mas cada fim é um novo começo, parafraseando Arendt e recomendando “pensar o que fazemos”, em 1915, em 1941 (na enchente, no genocídio), em 1991, em 2024, nas hipóteses alarmantes de 2030 e 2050.
17.
Não virei correspondente internacional. Como guia, visito muros e flashes de passados reprisados de segunda a domingo. Turistas falam em “lições da história”. Uma turista disse que não se aprende com história “porque ninguém mais lê história”. Passamos pelo Museu Histórico Alemão. The Roads Not Taken. Ou: as coisas poderiam ter sido diferentes trata de anos cruciais e de alternativas concretas que foram perdidas. Cada momento, com ou sem perigo, contém caminhos potenciais, visíveis, invisíveis. A história não é linha reta. Construir muros, fronteiras, erguer barragens, desmatar, matar porco e fazer presunto, reconstruir ou revolucionar, banalizar ou “ampliar a imaginação”, fechar ou abrir os olhos: o fim do fim da história significa que a realidade pode ser diferente, para pior ou para melhor.