Ventos da Dior
A displicência no modo de caminhar, o chapéu sobre os olhos e a grande saia com circunferência de 20m, o new look de 1947, representaram a grande onda lançada por Christian Dior em contraponto ao fim da Segunda Guerra. Alguém com a ideia de relançar o luxo num país paralisado por 3 milhões de grevistas, e que criou saias rodadas com tal leveza e quantidade de tecido num período econômico tão delicado, teria de ser considerado um alucinado por muitos. Mas o new look foi mais do que um sopro, foi uma ventania misteriosa nas ruas de Paris. Foi a resposta definitiva de esperança do estilista francês às intempéries causadas pelo fim da grande tristeza mundial. Dior achava que as mulheres precisavam de um motivo para sonhar, de um respiro de felicidade, de uma energia de esperança e amor.
Seria então necessário alguém com o princípio minimalista de Raf Simons para injetar um bom compasso de modernidade à maison Dior, num momento em que o mundo passa, de novo, por grandes ventanias, e para redescobrir a alta costura?
Ao longo da vida da marca, todos os criadores que por ali passaram, cada um com seu próprio carimbo, ovacionaram a extravagância e o exagero: “John Galliano fechou os portões da temporada de criações tão poderosas e excessivas no mundo da moda paralelamente à morte de Alexander McQueen”, lembra João Braga. Estava na hora, portanto, de flertar com o universo do consumidor mais jovem, tempo de menos teatro e super poses. Hora de usar alta costura no cinema, na galeria de arte, na gig, na aula de pilates e no café da manha.
Raf Simons, nascido na calma vila rural de Neerpelt, na Bélgica, filho único, cresceu rodeado de tios, tias, primos, em meio à natureza. Formou-se em design industrial e de mobiliário em Genk, onde fazia parte da turma dos estilistas Martin Margiela, Helmut Lang e Catherine Malandrino (integrante do grupo conhecido com o nome de Antuérpia 6).
Em 1995, Raf lançou sua primeira marca de roupas masculinas, incentivado por Linda Loppa, da Academia Real da Antuérpia (respeitada escola no mundo das Artes e da Moda), ao som de new wave e punk, mesma época em que relançou o skinny black suit. Música sempre fez parte do trabalho de Simons; em 1998, ele colocou os membros da banda Kraftwerk na passarela como modelos de seu desfile.
Sua primeira coleção foi inspirada em uniformes escolares — inspiração recorrente em sua vida, pois estudou em escola católica rígida. As duas seguintes também continuaram traduzindo essa mesma ideia de formas. A coleção de 1996, que se chamava We only come out at night (“A gente só sai à noite”), foi lançada em um vídeo feito por meninos que se reuniam no porão depois de uma festa de família, trocavam suas roupas sociais por roupas confortáveis e jogavam sinuca, retrato de sua geração.
Seu primeiro show foi apresentado em Paris, em 1997, e já nasciam naquele momento características que mais adiante seriam parte de seu estilo minimalista, executado com grande perfeição na alfaiataria masculina. Cinco anos após sua primeira apresentação, por meio da qual se firmou com um olhar à frente entre as marcas de menswear, seria responsável por romper padrões, misturar roupas casuais aos ternos e subverter as formas da alfaiataria.
Quando à frente da marca Jil Sander, onde ficou até o convite para integrar o time da Dior, a editora do The New York Times, Cathy Horyn, escreveu sobre ele: “A coleção do Sr. Simons para a Jil Sander – a sua terceira desde que se tornou diretor criativo da marca, há 18 meses – é perfeita. Vai fazer com o que todo o resto pareça pouco inovador, desajeitado e um pouco pateta”.
Trabalhando com Jil Sander, a darling do minimalismo belga, ele encontrou silhuetas ainda mais refinadas, lânguidas, e soluções para um estilo que sempre teve no seu DNA. Simons foi até o âmago do assunto com a “mestra” da questão e atingiu propriedade absoluta no minimalismo. Nada mais sensato do que o grande desafio que viria depois, o de rejuvenescer a Dior.
Dessa maneira, parece que as formas similares ao new look jamais foram revistas com conexão tão real e contemporânea ao espírito de 1947. Simons é conectado, à sua maneira, com a alma transgressora de Christian, o que é mais do que uma ligação puramente material ou física com suas criações. É uma ligação espiritual com todos os códigos da marca.
Há uma leveza insolente que caracteriza a maior parte da coleção de alta costura apresentada pela marca – em saias que aparentam quase sempre uma elegância tranquila e brilhantemente sofisticada.
Raf é dono de uma mentalidade artística obsessiva, ao mesmo tempo que se mantém conectado com suas verdades do coração, as quais transpõe às mãos — o que se supõe de um artista que comanda a arte da alta costura. Se no menswear ele colaborou ao eliminar volumes nos ombros, agora é o mágico reconstrutor que redefine a basque de Dior brincando com enchimentos que, em 1947, foram responsáveis por chocar um planeta. Manteve o busto ajustado, mas inventou um novo jeito malemolente de se mover, com saias livres e ultraelegantes, para quem, como eu, se interessa também em celebrar a vida com algum movimento.