Carnavais que nunca foram, mas poderiam ter sido
O que aconteceria se o pessoal do Guerra nas Estrelas viesse passar um carnaval no Rio nos anos 60. Essa é a legenda que, acompanhada de uma imagem de Darth Vader em plena folia carioca sessentista, inaugura a série Carnavais Artificiais. Com a ajuda da inteligência artificial, o artista multiplataforma Pedro Garcia de Moura imagina carnavais que não aconteceram, mas que, a partir da geração feita por ferramentas digitais, ganham todo o vigor que nunca tiveram. Uma foto na Praça Paris tirada com o celular (postada previamente no perfil Cartiê Bressão) ganha a estética pixel art dos jogos de Super Nintendo e MegaDrive; um registro feito no aterro do Flamengo ou no Cordão Umbilical do Humaitá ganha os traços totorianos típicos do estúdio Ghibli.
A parceria de Pedro com a inteligência artificial aqui é também a parceria de Pedro com muitos outros artistas, do francês Moebius ao chileno Jodorowsky.
A especificação de estilos visuais (ex: Anos 1960), as imagens de referências (ex: Foto de arquivo pessoal), as descrições da cena (ex: “Pessoas sobem no bonde e dançam. Festa de rua, carnaval do Rio de Janeiro, anos 1920. Ilustrado por Moebius”), todas essas informações passadas à IA vêm de ideias e iniciativas humanas. Quem gera as imagens, no entanto, é o programa Midjourney, sempre a partir desses conceitos textuais que chegam até ele. A participação humana, claro, não se restringe às ideias, ela se estende também, e principalmente, ao senso crítico. Para cada detalhamento que Pedro passa ao Midjourney, 4 imagens são criadas. Cabe ao artista julgar se gostou ou não e, se necessário, continuar estimulando o programa para encontrar exatamente o que procura.
Até agora, nas mais de 60 publicações do perfil, passamos um carnaval com Han Solo e cia., vimos os anos 1920 pelos olhos de Moebius, imaginamos como seria o fervo com a estética do NES e MegaDrive, nos transportamos para o universo estonteantemente específico dos carnavais de Alejandro Jodorowsky (a Jodofilia), sambamos no bloco da Bauhaus, descobrimos as figuras mitológicas e Ghiblianas do Rio, e acompanhamos os dramas de cada capítulo do Entrudo, registros do carnaval carioca do século XIX. Que viagem!
Não à toa, as imagens chegam a confundir algumas pessoas — “Ué…”, há quem pense, “mas não tinha Star Wars nos anos 60”. “Nossa”, há quem se surpreenda, “não fazia ideia que o Miyazaki gostava de carnaval”. Se há prova do sucesso que é o projeto Carnavais Artificiais, é essa.
A parceria Humano & IA pode, sim, render bons frutos, como nos conta Pedro.
Como você chegou à ideia de criar um primeiro carnaval que nunca existiu, ponto de partida para os que vieram depois?
Pedro Garcia – Eu tenho uma relação muito forte com o carnaval (foi fantasiado de Jorge Tadeu num bloco que eu comecei a tirar fotos como Cartiê Bressão). Depois do Réveillon, já estava começando a esquentar o clima do carnaval aqui no Rio quando eu resolvi brincar com o Midjourney, que já estava namorando há algum tempo, mas não tinha tido tempo pra estudar um pouco.
As ferramentas de inteligência artificial são treinadas com o conteúdo que já existe na internet, e por isso ele tende a ser mais americanizado (como é o caso do Guerra nas Estrelas). Mas como o Rio é uma cidade muito particular, com uma paisagem reconhecível e muito retratada desde sempre, ele também faz parte do repertório dessas ferramentas. Acho que aproveitei o clima de carnaval chegando com essa facilidade de usar a cultura pop da ferramenta e fui gostando dos resultados. Pareciam fotos que eu tiraria se isso tivesse acontecido de verdade.
Havia antes uma familiaridade com ferramentas de geração de imagens ou foi a partir da ideia do Carnavais Artificiais que você foi mais atrás?
PG – Já tinha brincado com o Dall-E alguns meses antes e tinha achado curioso e impressionante, mas o Midjourney (a ferramenta que eu uso pro Carnavais Artificiais) foi um salto quântico de qualidade.
Eu gosto de criar projetos que consigam me conectar com meu fluxo criativo. No Cartiê Bressão, por exemplo, o nome e a proposta funcionavam como um guia pra me orientar nas decisões do que fotografar (apesar de eu ter, ao longo dos anos, expandindo e me desprendendo da necessidade do humor). No caso do Carnavais foi a mesma coisa. Eu acho que eu consegui criar um direcionamento pra mim mesmo que potencializa minha criatividade.
Você acredita que a inteligência artificial tem o potencial de ampliar ou limitar a criatividade de artistas? Aqui, você se viu com mais ou menos liberdade?
PG – Só posso responder com propriedade sobre o que senti com a ferramenta, e foi de muita liberdade.
A diferença entre algumas séries me chamou a atenção: ora personagens do Star Wars, ora imagens criadas a partir de fotos tiradas por você. Por que isso? Em que medida esse tipo de escolha contribui para a criação da mitologia do carnaval carioca?
PG – Estou conduzindo esse projeto do mesmo jeito que conduzo quase tudo que faço criativamente: seguindo meu instinto. Desse jeito, tudo que aparece acaba sendo um reflexo do que eu sou.
Temos com Carnavais Artificiais uma colaboração efetiva entre humano e inteligência artificial, sendo o seu dedo indispensável para um resultado final atrativo. Você vê isso algum dia mudando?
PG – O que posso dizer é que a minha vida inteira, tive uma relação de imaginar coisas e materializá-las com as ferramentas que tinha à minha disposição. Agora parece que estou conseguindo enxergar a minha imaginação como ela é.
Hoje em dia, inteligências artificiais são capazes de emular trabalhos de artistas consagrados (como, por exemplo, rimas de Shakespeare ou pinceladas de Gogin). Bill Gates disse que, atualmente, esse é o aspecto mais interessante do ChatGPT. Você usou traços de Moebius, do estúdio Ghibli e outros. O que você pensa sobre esse lado “falsificador” das IA?PG – No meu caso, eu considero mais “antropofágico”, porque sinto que é uma continuação das minhas explorações artísticas. O próprio Cartiê Bressão já é uma apropriação do Henri Cartier-Bresson, e ao longo do projeto sempre fui compartilhando a relação que tenho com minhas referências. Encaro toda a arte que consumimos como peças na construção da nossa linguagem emocional, e depois gosto de combiná-las, modificá-las e usá-las pra me expressar.
Qual é a parte mais divertida desse projeto?
PG – Enxergar a imaginação por um lado, e a outra me sentir exatamente como me sinto tirando fotos na rua: com a minha sensibilidade e criatividade ligadas, e dialogando com o acaso.