Certo dia olhava as capas de jornais pelo smartphone e me deparei com uma notícia curiosa. Era sobre um hipnotizador britânico que prometia bater o recorde mundial de transe coletivo. Pela internet, hipnotizaria ao mesmo tempo milhares de pessoas, usando como ferramentas as redes sociais Twitter e Facebook. Nunca ouvira falar sobre recordes de hipnose em massa até ler aquilo, e nunca mais ouvi. Mas a notícia jamais saiu de minha cabeça. Não sei qual foi o resultado da experiência, nem qual é a definição das patologias que configuram cientificamente uma hipnose. Mas, numa análise estritamente social, me arriscaria a dizer que o sujeito não chegou sequer perto do recorde: transes coletivos são a coisa mais velha das sociedades, e nessa disputa sobre quem manipula mais mentes estariam hoje, mesmo que por vezes involuntariamente, governos e órgãos de imprensa de diferentes países.
Comecemos por um diagnóstico mais fácil e menos polêmico: Coreia do Norte. Em Pyongyang, por alguns momentos tive a sensação de estar em um filme de ficção científica, daqueles em que toda a população tem olhos coloridos e reluzentes, com expressões não-humanas – consequência de alguma hipnose geral. Acontecia nos museus, nas bibliotecas e em qualquer lugar onde a história do país – e até a da humanidade – era contada em versões, digamos, suspeitas, mas sem manifestação alguma de desconfiança pelos cidadãos presentes. O mais chocante eram as versões sobre como grandes inventos (materiais ou teóricos) da humanidade teriam nascido, supostamente criados pelo comunista, e sido roubados pelo “ocidente”. Convicções percebidas como falsas acabam inevitavelmente descredibilizando seus defensores, mesmo quando mudamos de assunto para algo do qual nada sabemos. É assim entre duas pessoas e entre dois países. Compreendo então o possível ceticismo de alguns ao ouvir dos norte-coreanos sobre suas experiências com o Japão ou mesmo com os EUA, embora muito do que tenha escutado lá seja fato comprovado. A verdade, porém, é que a população da Coreia do Norte analisa o mundo de forma bem diferente de nós porque recebe dados bem diferentes (de seu governo apenas). Desconsideram fatos reais? Sim. É um comportamento coletivo? Sim. Mas se tratará de um caso isolado? Serão muito diferentes de nós por isso? Acredito que não.
Vamos para seus inimigos. Digo, inimigos dos norte-coreanos; não seus, leitor (espero). No ano de 2003, quando começou a guerra no Iraque, 75% da população dos EUA apoiavam a invasão, e 25% diziam que seria um erro. A mesma pesquisa foi feita recentemente e o resultado, bem diferente: 60% dos estadunidenses disseram que a invasão sempre fora um erro, desde seu início. Como explicar essa mudança de percepção coletiva sobre uma coisa tão séria? A resposta óbvia é que hoje dispõem de mais notícias sobre as implicações da invasão, viram o que aconteceu, e puderam reavaliá-la. Assim sendo, reconhecer isso não seria admitir que, em 2003, não compreendiam a realidade, ou melhor, que as informações que então detinham não eram o bastante para uma análise sóbria da situação? Talvez não fossem suficientes, mas foram eficazes, vide o apoio de 75% da população à iniciativa militar. Sim, poderíamos dizer que foi apenas uma aposta errada. Mas, por que razões? Não seria isso um transe coletivo? Entretanto, antes de acusarmos a imprensa de hipnotizar propositalmente as massas, vale lembrar que transes coletivos também acontecem por acaso, e que os próprios jornalistas integram a massa.
O famoso escritor inglês George Orwell, num ensaio intitulado , lembra que todos somos capazes de acreditar em ideias já provadas e comprovadas como falsas, e que é especialmente em nossas reflexões e decisões políticas que esse vício aflora. Orwell cita vários exemplos notórios da história britânica, cuja repetição seria desnecessária, e alerta para que, cedo ou tarde, convicções coletivas falsas chocam-se contra a sólida realidade, “geralmente num campo de batalha”. Seu texto, escrito em 1946, parece perfeito para explicar a invasão ao Iraque em 2003. Eventos geopolíticos, porém, não são o ponto aqui. A questão é que o autor chegou a usar o termo “esquizofrenia” para explicar a capacidade que o homem tem de, em graus variados, acreditar e defender ideias que se anulam porque contraditórias.
Explicar a psique humana em suas múltiplas facetas exigiria credenciais e interesses que não tenho. Mas identificar situações de transe coletivo parece tarefa mais fácil a um visitante – como em meu caso na Coreia do Norte – do que a alguém que participa do grupo em questão.
E convém lembrar que o simples instinto pelo exagero, que dá humor e fascínio à história contada, conferindo portanto graça à vida, contribui também para a criação desses transes. Talvez daí possa-se compreender a imprensa ou, quem sabe, perdoá-la pelas supostas manipulações em massa de que os mais exaltados a acusam, muitas vezes com razão. Outro escritor, dessa vez brasileiro – Stanislaw Ponte Preta –, disse uma frase sensacional quando questionado sobre o boato de que seria homossexual: “O pessoal exagera um pouco”.
Talvez então a própria proposição do hipnotizador britânico – com a qual inicio esse texto – fosse um exagero. Afinal, como disse Stanislaw, “o pessoal” gosta de exagerar. Ou talvez tenha sido o jornalista – já que estamos suspeitando da imprensa – a tentar dar graça à história. Conseguiu, pois lembro até hoje da reportagem. Fato é que transes coletivos estão por aí aos mil, sejam seus responsáveis autoridades, imprensa, ídolos ou meros boateiros.
O curioso é que, apesar da pretensa lucidez nesse discurso, também perco horas a esmo no Twitter e no Facebook, as ferramentas que o britânico utilizaria. E enquanto cumpro essas rotinas, na maior parte do tempo inúteis, não acho que ainda precise de outra pessoa no papel do hipnotizador. Já me sinto parte de um transe coletivo.
Transes coletivos e a briga do pessoal
por Bruno Pesca