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Transes coletivos e a briga do pessoal

por Bruno Pesca

de Fábio Gurjão

Certo dia olhava as capas de jornais pelo smartphone e me deparei com uma notícia curiosa. Era sobre um hipnotizador britânico que prometia bater o recorde mundial de transe coletivo. Pela internet, hipnotizaria ao mesmo tempo milhares de pessoas, usando como ferramentas as redes sociais Twitter e Facebook. Nunca ouvira falar sobre recordes de hipnose em massa até ler aquilo, e nunca mais ouvi. Mas a notícia jamais saiu de minha cabeça. Não sei qual foi o resultado da experiência, nem qual é a definição das patologias que configuram cientificamente uma hipnose. Mas, numa análise estritamente social, me arriscaria a dizer que o sujeito não chegou sequer perto do recorde: transes coletivos são a coisa mais velha das sociedades, e nessa disputa sobre quem manipula mais mentes estariam hoje, mesmo que por vezes involuntariamente, governos e órgãos de imprensa de diferentes países.

Comecemos por um diagnóstico mais fácil e menos polêmico: Coreia do Norte. Em Pyongyang, por alguns momentos tive a sensação de estar em um filme de ficção científica, daqueles em que toda a população tem olhos coloridos e reluzentes, com expressões não-humanas – consequência de alguma hipnose geral. Acontecia nos museus, nas bibliotecas e em qualquer lugar onde a história do país – e até a da humanidade – era contada em versões, digamos, suspeitas, mas sem manifestação alguma de desconfiança pelos cidadãos presentes. O mais chocante eram as versões sobre como grandes inventos (materiais ou teóricos) da humanidade teriam nascido, supostamente criados pelo Great Leader comunista, e sido roubados pelo “ocidente”. Convicções percebidas como falsas acabam inevitavelmente descredibilizando seus defensores, mesmo quando mudamos de assunto para algo do qual nada sabemos. É assim entre duas pessoas e entre dois países. Compreendo então o possível ceticismo de alguns ao ouvir dos norte-coreanos sobre suas experiências com o Japão ou mesmo com os EUA, embora muito do que tenha escutado lá seja fato comprovado. A verdade, porém, é que a população da Coreia do Norte analisa o mundo de forma bem diferente de nós porque recebe dados bem diferentes (de seu governo apenas). Desconsideram fatos reais? Sim. É um comportamento coletivo? Sim. Mas se tratará de um caso isolado? Serão muito diferentes de nós por isso? Acredito que não.

Vamos para seus inimigos. Digo, inimigos dos norte-coreanos; não seus, leitor (espero). No ano de 2003, quando começou a guerra no Iraque, 75% da população dos EUA apoiavam a invasão, e 25% diziam que seria um erro. A mesma pesquisa foi feita recentemente e o resultado, bem diferente: 60% dos estadunidenses disseram que a invasão sempre fora um erro, desde seu início. Como explicar essa mudança de percepção coletiva sobre uma coisa tão séria? A resposta óbvia é que hoje dispõem de mais notícias sobre as implicações da invasão, viram o que aconteceu, e puderam reavaliá-la. Assim sendo, reconhecer isso não seria admitir que, em 2003, não compreendiam a realidade, ou melhor, que as informações que então detinham não eram o bastante para uma análise sóbria da situação? Talvez não fossem suficientes, mas foram eficazes, vide o apoio de 75% da população à iniciativa militar. Sim, poderíamos dizer que foi apenas uma aposta errada. Mas, por que razões? Não seria isso um transe coletivo? Entretanto, antes de acusarmos a imprensa de hipnotizar propositalmente as massas, vale lembrar que transes coletivos também acontecem por acaso, e que os próprios jornalistas integram a massa.

O famoso escritor inglês George Orwell, num ensaio intitulado In front of your nose, lembra que todos somos capazes de acreditar em ideias já provadas e comprovadas como falsas, e que é especialmente em nossas reflexões e decisões políticas que esse vício aflora. Orwell cita vários exemplos notórios da história britânica, cuja repetição seria desnecessária, e alerta para que, cedo ou tarde, convicções coletivas falsas chocam-se contra a sólida realidade, “geralmente num campo de batalha”. Seu texto, escrito em 1946, parece perfeito para explicar a invasão ao Iraque em 2003. Eventos geopolíticos, porém, não são o ponto aqui. A questão é que o autor chegou a usar o termo “esquizofrenia” para explicar a capacidade que o homem tem de, em graus variados, acreditar e defender ideias que se anulam porque contraditórias.

Explicar a psique humana em suas múltiplas facetas exigiria credenciais e interesses que não tenho. Mas identificar situações de transe coletivo parece tarefa mais fácil a um visitante – como em meu caso na Coreia do Norte – do que a alguém que participa do grupo em questão.

E convém lembrar que o simples instinto pelo exagero, que dá humor e fascínio à história contada, conferindo portanto graça à vida, contribui também para a criação desses transes. Talvez daí possa-se compreender a imprensa ou, quem sabe, perdoá-la pelas supostas manipulações em massa de que os mais exaltados a acusam, muitas vezes com razão. Outro escritor, dessa vez brasileiro – Stanislaw Ponte Preta –, disse uma frase sensacional quando questionado sobre o boato de que seria homossexual: “O pessoal exagera um pouco”.

Talvez então a própria proposição do hipnotizador britânico – com a qual inicio esse texto – fosse um exagero. Afinal, como disse Stanislaw, “o pessoal” gosta de exagerar. Ou talvez tenha sido o jornalista – já que estamos suspeitando da imprensa – a tentar dar graça à história. Conseguiu, pois lembro até hoje da reportagem. Fato é que transes coletivos estão por aí aos mil, sejam seus responsáveis autoridades, imprensa, ídolos ou meros boateiros.

O curioso é que, apesar da pretensa lucidez nesse discurso, também perco horas a esmo no Twitter e no Facebook, as ferramentas que o britânico utilizaria. E enquanto cumpro essas rotinas, na maior parte do tempo inúteis, não acho que ainda precise de outra pessoa no papel do hipnotizador. Já me sinto parte de um transe coletivo.