Justine Triet (esq.), vencedora da Palma de Ouro, em Cannes, com a atriz Sandra Hüller.
Cinema

Anatomia de uma queda: os amores são assassinados ou cometem suicídio?

No cenário branco-neve de uma isolada cidade francesa, um menino encontra o seu pai morto. Assustado, ele chama pela mãe, a única pessoa presente na casa. Ela chega para constatar que o corpo estatelado na entrada não sobreviveu à queda da janela mais alta da residência. Quando a hipótese de um acidente é descartada, surge a questão: o homem se atirou ou foi atirado? No caso da segunda hipótese, a suspeita recai toda sobre a esposa. Cabe à justiça averiguar. 

Com essas breves linhas de descrição, o filme projetado em nossas cabeças é um suspense pretensamente obscuro, apenas mais um thriller de tribunal que se ocupa em fazer jogos de sombras e instigar o desejo de saber se a esposa matou ou não o marido. Essa seria a versão fraca de Anatomia de uma Queda. Talvez não fosse de todo ruim, mas seria aquele bem-bolado esquemático visto uma batelada de outras vezes. A versão que de fato existe do filme de Justine Triet, porém, é inteligente o suficiente para deixar as banalidades de lado e focar suas energias nas minúcias de um relacionamento conturbado, fazendo com que quase nos esqueçamos do possível crime e do possível suicídio. Afinal, as vidas daqueles dois indivíduos, aprisionados por e em si mesmos, pareciam condenadas já de partida. Este, sim, é um filme que vale ser visto e que faz jus à abertura da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e, claro, à Palma de Ouro de Cannes que recebeu em maio deste ano.

Sandra (Sandra Hüller) é uma escritora alemã bem-sucedida, altamente proficiente, que “trabalha sob quaisquer circunstâncias”, como ela mesma diz; Samuel (Samuel Theis), por sua vez, é francês e, em tempos idos, até foi escritor, mas agora, ainda que não se contente com o fato, é professor. Daniel (Milo Machado-Graner), 11 anos e vítima de um acidente que o deixou cego, é o filho do casal. Com Sandra e Samuel constantemente às turras, o clima geral do lar familiar não é bom — e saber disso é imprescindível para qualquer tipo de entendimento acerca da ocasião em que Samuel morreu. Em casa, enquanto Sandra dá uma entrevista e troca flertes com a entrevistadora, seu marido faz birra e coloca uma música no volume mais alto (destaque para a escolha surpreendente da canção: uma versão instrumental de P.I.M.P., hit de 50 Cent). Ela tenta disfarçar o incômodo com a atitude, dizendo para continuarem como se nada tivesse acontecido, mas não demora para que a entrevista tenha que ser interrompida, sendo deixada para outro dia. A partir daí, os eventos centrais se desenrolam.

Daniel sai da casa barulhenta para passear com o seu cão-guia, Snoop, e, ao voltar, vive o pesadelo de encontrar o pai inerte na neve. O que aconteceu no meio tempo? Samuel se jogou? Caiu? E onde estava Sandra enquanto isso acontecia? Essas perguntas, claro, serão exploradas ao longo de Anatomia de uma Queda — mas, felizmente, a coisa vai bem além. O filme não se atém somente à pergunta do que aconteceu nesse ínterim, mas também ao que levou à criação daquele cenário belicoso entre marido e esposa, estabelecendo uma tapeçaria matrimonial intensa e dolorida. Ele a culpava por não escrever mais, já que teve que se dedicar a mil outras tarefas enquanto ela se preocupava com a literatura e nada mais. Sandra, no entanto, parecia indiferente ao ressentimento palpável do companheiro, demonstrando uma frieza que protagonistas não costumam ter. 

Em um papel escrito especificamente para ela, atuação de Hüller se recusa a deixar sequer um momento irreal na tela, entregando tudo: a dubiedade necessária para que nada fique claro, a vulnerabilidade que se esperaria de alguém acusada de assassinar o próprio marido, a astúcia ardilosa que não faz muito de si apesar de ser gritante, o descaso impactante demonstrado aqui e acolá. Com sua personalidade merecedora de reprimendas, a personagem constitui um paradoxo sedutor: pode-se dizer que ela não é flor que se cheire, mas é assim que Sandra agrada o olfato. A empatia por ela não é criada a partir do exagero de cenas manipulativas, mas da retratação de alguém com matizes e timbres factíveis. O roteiro de Justine Triet e Arthur Harari, parceiros na vida real, é hábil em apresentar as nuances de sua personagem principal, mas os louros vão, sobretudo, para Hüller. Não é à toa que é tida como uma das mais interessantes atrizes do momento — se não a mais interessante.

Algo que contribui para que o filme destoe da expectativa criada por sua sinopse é o modus operandi do sistema legal francês, apresentando uma lógica diferente de julgamento. Estamos acostumados a ver julgamentos à moda estadunidense: uma testemunha por vez, cada advogado tendo os momentos certos para se pronunciar, participações pontuais dos juízes, “objection” para lá e “overruled” para cá. Isso para não falar dos argumentos finais sempre verborrágicos. Em Anatomia de uma Queda, o julgamento acontece com um quê bem menor de formalismos: testemunhas falam a bel prazer, chegando até a se defender prontamente de algo dito por outra testemunha, e as intervenções dos advogados não seguem as diretrizes do bastão de fala (pelo menos não de maneira tão rígida). Nisso, por mais tensos que sejam os relatos e o clima geral de uma cena, há momentos cômicos funcionais, vindos, em sua maioria, da juíza arbitrando o caso (interpretada pela francesa Anne Rotger). Contar com esses respiros rápidos é efetivo até para que a densidade, quando aparece, intensifique a sua potência. Para um filme que passa boa parte de suas duas horas e meia no tribunal, nada como recursos que possibilitem dinamismo e contrabalanceamento, criando um ritmo vivo e somando à poética conceitual.

A poética visual, no entanto, fica um tanto descompassada com inserções de imagens no estilo “cara de documentário” dignas de The Office (close-ups inclusos). Ainda que isso auxilie com a intimidade de algumas cenas e a comicidade de outras, causa estranhamento por nunca ser a tônica geral de uma sequência, nem mesmo as de tribunal. Se o objetivo era mesmo o de desconforto, ele não chega a ser tão forte a ponto de justificar a escolha. É o tipo de idiossincrasia que se percebe conscientemente ou não, mesmo que não se saiba identificar a origem do problema. De qualquer forma, o deleite advindo dos interrogatórios não se perde, sendo de todo jeito o pilar que sustenta o filme.

O caso segue: vemos reproduções em animação de como teria se dado a queda de Samuel, com projeções matemáticas que levantam hipóteses para corroborar tanto com o caso da promotoria quanto com o caso da defesa. Depois de anos de Lei & Ordem e tantas outras produções do tipo no cinema e na televisão, a isso estamos acostumados. Mas, no frigir dos ovos, o epicentro das investigações vira o relacionamento de Samuel e Sandra. Um psicólogo fala sobre as queixas que Samuel fazia sobre o casamento, o filho relata discussões que costumava ouvir de seu quarto, e por aí vai. O ápice dessa investigação é quando um áudio é colocado sob os holofotes. Com o intuito de criar um diário de registros para transformá-lo em um livro (ficcional ou não), Samuel gravava a maioria de suas conversas, fosse consigo mesmo, fosse com outras pessoas. Entre as gravações, está uma discussão acalorada com Sandra. Um arranca-rabo inicialmente verbal e posteriormente físico. Parte dela, ouvimos; outra parte, vemos em flashback, no momento mais poderoso do filme. Eis uma discussão de verdade e não uma desculpa para se encaixar frases de efeito ou esfregar uma metáfora na cara de quem estiver assistindo. Samuel não pode falar sua língua-mãe, o francês, e o mesmo vale para ela, que não pode falar o alemão. O inglês, então, é a língua em que se comunicam e, consequentemente, discutem. Fragilizado, ele joga a culpa de sua infelicidade em cima de Sandra, que, categórica, não assume qualquer tipo de responsabilidade. As traições antigas da esposa vêm à tona no meio do bate-boca e, nos segundos derradeiros do áudio, quando já não estamos mais no flashback e sim de volta ao tribunal, ouve-se o barulho da briga chegando às vias de fato.

Com intensidade similar às famosas discussões entre Scarlett Johansson e Adam Driver em História de um Casamento, de Noah Baumbach, a sequência é a apoteose de tudo que justifica a existência de Anatomia de uma Queda. Menos suspense, menos “fez, não fez”; mais relações humanas, mais “meu delírio é a experiência com coisas reais”. Duas pessoas que se relacionaram por um longo tempo, pais de um filho e de um enorme acervo memorial compartilhado, de repente (ou não de repente assim) se vêem aprisionados na queda contínua da própria história conjunta, escrita em uma língua que não pertence a nenhum dos dois — a da longevidade do amor. Aquela que deveria ser a linguagem de encontro acaba por virar uma arma que nada comunica se não a mágoa. Essa arma, que tem como pólvora os anos de existência, assassina ou comete suicídio? Se o cair pode se assemelhar ao voar, então os dois nascem do mesmo desejo de abrir as asas — pelo menos até que a queda atinja a superfície, quando fenecem deixando repercussões distintas.

Dentre os muitos dedos levantados por Samuel, ele a acusa de roubar a ideia que originalmente era de um romance seu. No tribunal, ela explica que nada roubou. Na versão dela, o que ele tinha era um manuscrito de vinte e tantas páginas cuja premissa Sandra adorava, mas que ele, no auge de sua frustração, simplesmente não conseguia levar para frente. Tendo achado a ideia “brilhante”, ela lhe perguntou se poderia escrever um romance tomando aquilo como inspiração — e, com sua proficiência característica, o fez com maestria. É, então, que a acusação começa a insinuar que ela usa a vida pessoal nos livros que produz, destacando uma passagem de uma obra que relata a morte do marido pela esposa. O jogo entre ficção e realidade que começa a se levantar, porém, não serve ao propósito de enturvar o caso da morte de Samuel. Não haveria lá muita graça em fazê-lo. Algo que fica da discussão é que cada um esbraveja de boca cheia sua leitura das coisas, não importa o quão contraditórias ou fantasiosas sejam. E é sobre esse aspecto quimérico dos relacionamentos que a bruma da incerteza é lançada. 

No caso de uma relação, de uma vivência conjunta, o que é verdade e o que não é? Como podem duas pessoas terem passado anos em união e, mesmo assim, terem interpretações tão distintas do que aconteceu nesse tempo? Toda a culpa que Samuel jogava em cima de Sandra era mesmo justificável ou era uma desculpa para suas frustrações? E quanto à auto-indulgência dela, o que dizer? Não é por acaso, portanto, que a atriz Sandra Hüller e o ator Samuel Theis interpretam personagens que têm os primeiros nomes iguais aos seus. É uma brincadeira sutil que adiciona uma nova camada ao faz-de-conta documental que às vezes vivemos, um detalhe bastante importante àquilo que o filme tem a dizer.

Com esse ponto de ficção/realidade já bem estabelecido, expandindo-se à subjetividade não só interpretativa mas também memorial — e fica a pergunta: interpretar seria, também, uma forma de lembrar? —, é difícil não sentir o peso do excesso quando bons minutos são gastos com um testemunho que Daniel decide fazer de última hora sobre uma ida ao veterinário com Samuel. Na viagem de carro, o filho escuta um discurso fúnebre de seu pai que, analisado em retrospecto, seria um bom indício de que as tendências suicidas estavam ali. Além de desnecessariamente conduzir para uma certa conclusão, a realizadora decidiu aproveitar o flashback para colocar o discurso do pai na voz inocente de Daniel, enquanto o menino relata o diálogo inteiro, para enfatizar a subjetividade daquele e de todos os outros testemunhos. Muito embora seja ótimo ver uma performance inspirada vinda de um ator tão jovem — Milo Machado-Graner brilha do começo ao fim —, o momento “verbete de significado” não precisava existir. E, para piorar, o excesso se faz presente com força redobrada, pois acontece logo quando o julgamento está próximo do fim, adiando a resolução e resultando em uma leve frustração.

Mas é seguro dizer que os méritos superam as imperfeições.

Até Anatomia de uma Queda, Justine Triet tinha dirigido filmes eficientes mas pouco ambiciosos, sendo Na Cama com Victoria, de 2016, o mais conhecido deles. Com essa sua última obra, não só a ambição existe como é alcançada. Talvez no pitch para vender o filme, bem diferente de seus outros, tenha dito que escreveu a quatro mãos uma mistura de Anatomia de um Crime, clássico de Otto Preminger estrelado por James Stewart, com História de um Casamento e Tár; ou, então, que pretendia fazer um comentário sobre o escrutínio das redes sociais de um jeito ligeiramente inusitado, retratando as diferentes perspectivas que mesmo as vivências mais pessoais têm. Seja como for, deu certo. Ainda que não tenha feito o suspense apelativo que teria sido produzido na Hollywood dos anos 1980 – 1990 com Michael Douglas no lugar de Hüller, Triet consegue pintar um quadro esbranquiçado de um amor exangue e levantar reflexões sobre o ressentimento, a cumplicidade, o fazer e o não-fazer literário, a maternidade e a paternidade, a multifuncionalidade das narrativas, os relacionamentos que caminham para frente e os que morrem na praia (ou na neve), tudo isso enquanto segura pelo colarinho e prende a atenção de maneira a dar inveja a muitos filmes. 

Impossível não se deixar cair — como, aliás, nos permitimos fazer com frequência quando o assunto é amor, cometendo um pouco de assassinato e um outro tanto de suicídio.