#43MiragemCulturaSociedade

Olhar para fora e desmontar miragens

Independência do Brasil, de Pedro Américo.

Caipira de Batatais, fui jovenzinha ser intercambista na casa de uma família no interior da França. Como fazia parte do programa do Rotary, era minha missão fazer palestras para os franceses sobre meu país.

Saí de um Brasil tropicalista, imbuída de Bossa Nova, Doces Bárbaros, Primeiras Histórias, Havaianas, e um – descobri mais tarde –alto padrão de higiene pessoal. Tive como resposta perguntas bem diretas sobre desigualdade social, escravidão. E esse foi o início de minha trajetória na desconstrução e reelaboração de meus ideais e minhas ideias de Brasil.

Hoje trabalho com o desenvolvimento de inteligência cultural, a habilidade de gerenciar diferenças culturais, sejam elas culturas de gênero, de gerações, de raças ou de orientação sexual, mas sou especialista em gerenciamento de culturas nacionais. Por isso, há mais de vinte anos sou cotidianamente exposta ao e confrontada pelo olhar de não-brasileiros. 

No entender de minha área, tratamos cultura como um viés: hábitos, costumes, valores, crenças que aprendemos ao longo da vida e acabam por se tornar a lente pela qual vemos o mundo. Meu desafio é a conscientização sobre cultura como uma perspectiva dentre várias possíveis. Minha meta é que, através da tomada de consciência, mudanças possam ser provocadas e operacionalizadas. Meu objeto maior sempre foi o Brasil, aquele para não-amadores.

Alguns dizem que Brasil vem de pau-Brasil, das brasas que fazem os brasis. Outros dizem que Brasil vem de mitologia celta, apropriada pelos portugueses, de uma lenda de uma ilha de extrema abundância, onde povos nativos andavam nus integrados harmonicamente com a natureza. Deus é brasileiro desde antes da colonização.

A ideia de ilha me é muito cara. Demorei a entender o que chamam de “sentido de excepcionalidade do brasileiro”, que hoje se me traduz principalmente no isolamento geográfico, populacional e econômico de nossa cultura. Quantos nos damos conta que ainda que gigante com estatura de continente, temos grande parte de nossa população ocupando a costa leste? Olhando para o Atlântico, nos isolamos seja margeados pelas águas do oceano, seja pelos nossos interiores de floresta ou latifúndios quase inabitados. Fato é que convivemos bem pouco com fronteiras ou pessoas de outras culturas e, ainda que normalmente se destaquem nossos regionalismos, o que me chama atenção é falarmos português de norte a sul, comermos arroz, feijão e farofa, até, há alguns anos, assistirmos a um único canal de televisão e termos nenhum conhecimento do sistema mundo.

Miragem 1: país da imigração? Sim, tivemos alguns importantes fluxos de estrangeiros para cá; o primeiro, raramente reconhecido, ainda que fundador, foi o dos africanos escravizados (1500-1888), depois, bem depois, italianos e japoneses (1880-1950) e hoje, nada. Apenas 0,3% da mão de obra no Brasil é imigrante. Enquanto a Colômbia acolheu 3 milhões de Venezuelanos desde o início da crise na Venezuela, nós recebemos algo como 300 mil. Somos um povo isolado. Nada expostos ao diferente. Uma ilha.

Economicamente fica ainda mais fácil falar sobre isso. De acordo com o Banco Mundial, apenas 12 países são mais fechados que o Brasil (tarifas de importação das mais altas do mundo). São eles: Chade, Camarões, Etiópia, Nepal, Bangladesh, Paquistão, Benin, Venezuela, Togo, Senegal, Quênia e Congo . Alguma vez na vida você se imaginou nesse grupo?

Ainda segundo o Banco Mundial, em seu ranqueamento de países mais fáceis para negócios no mundo, o Brasil está desde sempre numa posição muito ruim. No ano de 2020 aparecemos como o 124º, entre 190 países. Uma pequena amostra da lista segue abaixo para comparações:

Nova Zelândia: 1
EUA: 6
Alemanha: 22
China: 31
Índia: 63
Rússia: 28
México: 60
Brasil: 124 

Importante chamar atenção para o fato de que esse ranking não mede performance. Figuramos, e, segundo o mesmo Banco, figuraremos pelas próximas duas décadas, pelo menos, entre as 15 maiores economias do mundo. Mas desse seleto grupo das grandes economias mundiais, somos a única economia posicionada abaixo da linha dos 100. Somos potentes, mas nada abertos nem globais.

Miragem 2: somos abertos e acolhedores. No entender do Banco Mundial, nosso isolamento se deve a um sistema burocrático extremamente complexo, dinâmico e sem transparência. No meu entender, a burocracia brasileira é ferramenta histórica que usamos para manutenção de uma economia formalmente escravagista até 1888 – economia de desigualdade a partir de lá, em que, sem paralelos no mundo, conseguimos figurar entre as 15 maiores potências, mas sermos a 7ª maior desigualdade social. 

Sabemos que somos mais desiguais que a Índia? Porque a Índia é mais pobre, mas desigualdade se mede não só pela pobreza, mas também pela riqueza. Sabemos que somos a segunda maior concentração de renda do mundo? Só perdemos para o Catar. Não há o estrangeiro que não saiba que a maior frota de helicópteros do mundo fica na cidade de São Paulo e que a maior frota de jatos privados é brasileira. Não, não são frotas americanas, russas, chinesas ou alemãs, mas brasileiras. A grande jaboticaba brasileira no meu entender é conseguirmos manter a 12ª economia do mundo nas mãos de 1% de uma população de 220 milhões de habitantes. Genial. Genialidade do mal.

É muito comum ouvir desses estrangeiros duas grandes sugestões para o Brasil.

Primeira sugestão: educação. E aí cabe a mim explicar que nossas melhores universidades são públicas, mas que, para chegar a elas, é preciso ter tido acesso à educação privada de custo tamanho que só 1% das famílias brasileiras podem pagar. E que como uma espécie de reação ou retaliação a instituição do sistema de cotas, vem havendo um desmonte do ensino superior público e uma debandada de alunos economicamente privilegiados rumo ao ensino privado, o que me parece mais uma sofisticada manobra nossa e de nossa elite em direção à não-mistura de classes e raças. 

Segunda sugestão: revolução. E aí preciso contar uma característica não confrontacional nossa. Certamente não real quando de um olhar mais profundo sobre nossos movimentos históricos. De maneira alguma, tenho a intenção de contribuir para perspectivas sobre o brasileiro pacífico. Mas nossa narrativa identitária evita o reconhecimento de guerreiros e oprimidos, e nossa bandeira exalta exuberâncias naturais mais do que o sangue nunca derramado em proporções cívicas, ou que configurassem uma guerra civil por exemplo, ou qualquer ideia institucional. Ainda que a História da própria bandeira não seja essa e tenha mais a ver com as cores dos Habsburgos. 

Mas concordo que, como povo, identificamo-nos mais com a natureza e com o futebol do que com a instituição Brasil e que jamais aprendemos no passado que a luta ganha, porque a violência contra os oprimidos sempre foi institucionalizada e brutal. Parece-me natural que o povo – na maior parte de nossa História, percebido como inimigo interno pelas elites econômicas e políticas – tenda a ser menos engajado e esperançoso sobre processos de construção de cidadania se essa sempre lhes foi repetida e violentamente negada. Até no já consentido polêmico quadro oficial da suposta independência do Brasil, o lugar do povo é de espectador. E isso não gera vergonha na instituição.

Existe uma piada que os argentinos contam sobre si e que é do conhecimento de muitos: “argentinos são italianos que falam espanhol e se acham ingleses”. Trabalhando com os “hermanos”, descobri que eles têm a mesma piada sobre os brasileiros, que “seriam africanos, que falam português e acham que são americanos”. Feitas as ressalvas sobre a generalização dos africanos, seria bom reconhecermos que temos bem mais de Luanda do que de Lisboa por aqui. E o fato desse reconhecimento ser tão difícil já diz da mais importante miragem que não queremos nos desfazer.

Cultura é um viés que perpetuamos. Um teórico de minha área (Johan Galtung, 1930) vai inclusive dizer que é mais fácil mudar o DNA de um indivíduo do que mudar padrões culturais. Uma polonesa que trabalhou comigo sempre me contava que na Polônia existe uma “piada” sobre como um polonês não consegue ficar duas horas no carro com um amigo sem que comecem a falar da guerra. Sempre me pergunto quando falaremos da escravidão. 

Para mentalidades culturais mais direcionadas pela lógica e pela razão, se nosso maior destaque é a grotesca desigualdade econômico-social na 12ª maior economia do mundo e se, de cada quatro pessoas pobres no Brasil, três são negras, logo estamos definitivamente distantes de qualquer ideia de democracia racial. Estamos seguramente falando do pior racismo estrutural existente. Sem chances para miragens. 

Confesso que talvez meu maior desafio intelectual seja tentar entender por que é tão difícil para nossa elite, que frequenta Harvard, Oxford ou Science Po, ou , nas férias, Paris e Nova Iorque, responsabilizar-se por isso. E a única resposta que me vem é cultural: nascemos assim, uma economia de desigualdade é também uma economia de privilégio, e como é difícil renunciar a privilégios. Alguns me pedem soluções práticas. Já fiz uma conta de que, se destinássemos o montante de uma garrafa dos vinhos que tomamos nos finais de semana a um de nossos funcionários domésticos, aumentaríamos a renda deles em, pelo menos, 10% a 20%, o que representa um aumento de renda de 40% a 80% mês. Talvez já fosse muito arrumar nossas camas e lavar a louça vez ou outra para minimizar o abuso dos corpos. Não acho que a elite seja uma mesa de conspiradores reunidos tramando o domínio do mundo. Mas nossa inabilidade para lutarmos por uma reforma tributária que seja pró-distribuição de renda nos coloca bem próximos a sociedades com as quais jamais gostaríamos de parecer, como a Guiné Equatorial, por exemplo.

Lévi-Strauss traz em seus Tristes Trópicos a ideia de que tendemos a pegar mais pesado com nossa própria cultura e, como já provável e claro aqui, sou um tanto inconformada com as auto-imagens que perpetuamos de Brasil. Mas não acho que somos piores que a maioria e que haja solução em algum lugar lá fora. Também admiro um tanto a sabedoria dos que não querem ter razão, mas sim serem felizes. 

Tem oásis por aqui. De extrema complexidade, somos frutos de violência afetuosa, que o diga a Luzia que, há mais de 30 anos é parte da família, e que depois dos beijos e abraços nas crianças após a novela, aconchega-se para o descanso nos seus 2m². Por gambiarras que não caberão aqui, identifico-me sim, também, com o homem cordial, aquele que, para além da educação polida, por falta de oportunidade de institucionalização de seus sentimentos e profissionalização de suas relações, é dirigido majoritariamente por suas emoções e relações. Afinal, apesar de tudo, há muito coração no Brasil.