Nunca mais
Sentada à minha frente, uma só perna esticada, esfregando o pé de cima a baixo na minha língua de fora, eu imóvel, teso, só resistindo à pressão que seu pé fazia. Cheiros junto com saliva iam se espalhando pelo meu rosto, boca, nariz, testa, queixo, aí olho, bochecha e tudo de novo outra vez. De vez em quando ela para e distribui tapinhas em meu rosto com a palma e o peito do pé, olhos avisando pra eu nem tentar me esquivar ou buscar proteção. Obediência era o que se esperava de mim, obediência, apenas, e era eu me distrair um pouco, deliciado com os encantos daqueles pés, ora um de cada vez vindo pra cima de mim, ora os dois juntos, e lá vinha um golpe surpresa pra eu não ficar nunca muito acomodado. Tapinha de leve, que aquilo era um pé batendo num rosto, mas, por mais leve que fosse, mexia com os meus medos todos. E o engraçado é eu em dúvida, hoje, se gostei mais de ter os pés dela ao alcance dos meus cinco sentidos ou se dela brincando de distribuir tapinhas surpresas com esses mesmos pés. As duas coisas, talvez? Defender-se é reação inconsciente, em minha mente alarmes a que toda uma vida fui condicionado soando, perigo!, perigo!, e eu precisando aprender a ignorá-los, já que desligá-los não era uma simples questão de querer. Eu queria era o quê, aliás? Estar totalmente rendido, à mercê das vontades dela? Se sim, então era mais do que necessário aprender a estar entregue, as minhas defesas todas desarmadas. O frio na barriga que isso não traz! Ela percebe meu desconcerto, acho até que riu dos meus medos, mas sabe também, eu queria crer, que abusar demais, isso não seria lá muito prudente. Naquele momento inicial ao menos, eu ainda tão virgem nos meus sonhos de submissão. Seu pé então se aquieta e a língua precisava agir, cavucando fundo os poros daquele pé atrás do gostinho salgado, esfregando firme cada curvinha mínima, dedos, entrededos, palma, peito, calcanhar, mãos em movimento orquestrado aproveitando o ensejo pra massageá-lo. Pelezinhas soltas no pé, ela aponta, bolhas já secas, língua e dentes logo se revezando em raspar de leve até deixá-la lisa outra vez, eu engolindo os resquícios da esfoliação, assim como tudo o que empelotasse na língua. Me arrepiavam as sensações que eu vivia. Não havia script, não havia horário, nada, eu um poço de timidez, sem saber direito o que fazer com as mãos, se eu podia, ou não, olhá-la nos olhos, envergonhadíssimo da ereção indisfarçável que tomou meu genital logo que ela mandou eu me despir. Seus olhos pareciam nem notar aquele pedaço de carne, pedaço que sempre tratei como o ator principal do tesão, mas que ali encarnava o papel, no máximo, de um figurante espalhafatoso. “Agora que você já se esbaldou”, ela disse, “é minha vez de sentir prazer”. Fiz que sim com a cabeça e ela, dando uma última pancadinha em meu rosto, falou pra eu ficar de pé, mantendo as mãozinhas sempre pra trás. “É um belo pau, você deve ter bastante orgulho dele, não?”, ela falou, enquanto manuseava minhas bolas, apertando-as ora de levinho, ora com mais força para testar o tanto de dor que eu suportava. “Você garantiu que ia me dar prazer, fazer de tudo pelo meu prazer… Espero não me decepcionar”, declarou, por fim, levantando-se da cama e arrastando-me pelas bolas até um canto do quarto. Não transcorreram duas horas desde o bar em que casualmente nos conhecemos até chegarmos àquela espelunca, o hotel mais próximo que havia, onde entramos sem sequer saber nossos nomes, sem ter combinado nada. O que nos ligava eram aqueles pés, pés que me fascinaram, pés pelos quais caí rendido no bar, beijando-os de joelho, em público, sem que a dona dos tais manifestasse qualquer desconforto com a cena. Era como se ela já esperasse a atitude, talvez até estranhasse o tanto que demorei. Foi dela, aliás, a ideia de virmos para o tal hotel, onde eu teria toda a liberdade do mundo para reverenciá-la. Paguei nossas comandas, deixei acertado o pernoite e cá estávamos nós. No entanto, apesar do deleite supremo que eu vinha experimentando, eis-me agora confuso com a atenção que ela dedicava ao meu genital, receio de que aquele encontro mágico com um ser superior se convertesse, de repente, em mais uma transa banal igual a inúmeras outras. Como eu estava enganado. Ela iria se valer, sim, do meu genital, mas não da forma ordinária, com a penetraçãozinha bonitinha e, coroando tudo, uma ejaculação. O tesão se manifestava de formas menos óbvias para essa mulher, algo que eu só percebi no momento em que ela me mandou fechar os olhos e, sem aviso prévio, pá!, acertou um chute forte bem no meio das minhas pernas. Sim, lá mesmo. Caí no chão estrebuchando de dor e, diante da minha acerba indignação, ela se limitou a sentar na cama, rindo, e a dizer: “bom, agora você já sabe o que precisa fazer pra me agradar”. Eu nunca havia vivido nada parecido, nunca havia imaginado receber um chute daqueles, sobretudo num contexto erótico, e, apesar disso, a ereção em meu genital seguia firme e forte, me deixando confuso sobre como interpretar o que eu estava vivendo. Nisso, ela se aproxima de mim, faz carinho em minha cabeça e manda eu me recompor, pois esse era só o primeiro. Avistar seus pezinhos divinos, tê-los tão perto, me lembrou da razão de eu estar ali e da promessa que havia feito. Passado o susto, a dor já não parecia mais tão atroz, momento em que me levantei e, cheio de coragem, falei que, se era assim que ela queria que eu a servisse, assim seria. “No próximo, quero você de olhos abertos, agradecendo cada chute”, ela disse. De olhos abertos como? Seria possível ficar tão entregue? Já havia sido difícil eu não me proteger dos tapinhas de leve que ela dera em meu rosto, imagina assistir indiferente a um chute vindo na direção das minhas bolas, eu tendo que agradecer, ainda. Na primeira tentativa, o medo venceu — fechei as pernas antes que o alvo fosse alcançado e quase fiz com que ela torcesse o pé. Seu olhar transparecia raiva e contrariedade. Pedi para ficar de olhos fechados na próxima vez, seria mais fácil assim, mas ela estava irredutível, queria que eu me entregasse por completo, assistindo a tudo. Ela daria o chute e esperaria eu me recompor antes do novo ataque, mas eu não poderia fechar as pernas nem sair daquela posição, as mãozinhas sempre para trás. Nem me masturbar eu podia. Ela queria descobrir até quando a ereção ia se manter. O desafio era aprender a lidar não só com a dor, mas também com os meus medos, medos que me impediam de vivenciar o prazer de me ver tão rendido, um mero brinquedo nas mãos daquela perversa mulher. Contei oito chutes, talvez tenham sido mais. Minhas pernas tremiam, lágrimas escorriam pelo meu rosto, mas a ereção se mantinha, e agora era eu quem queria ir até o fim, eu quem queria descobrir o limite. No nono chute, sem eu sequer relar no meu genital, inexplicavelmente gozei. Caí no chão, em prantos. O gozo me trouxe à realidade, o gozo aflorou a dor, fez com que eu me sentisse violentado, humilhado. “Você nunca mais vai conseguir gozar de outra forma”, ela sentenciou enquanto calçava os sapatos. Nunca mais nos vimos, e hoje, escrevendo este texto, só posso dizer que ela estava certa.