O mundo termina como começa
Para Ismar Tirelli Neto
Mundo é uma daquelas palavras enganadoras. Acreditamos estar de acordo quando dizemos “mundo” ou “fim do mundo”, mas no mais das vezes o que fazemos é entrar em um terreno de equivocações que podem ser fatais. Apenas a história moderna da filosofia ocidental oferece uma miríade de sentidos para o conceito. Kant, por exemplo, concebia o mundo como a natureza teleologicamente organizada, isto é, orientada para fins da razão humana. Para Hegel, trata-se do processo da transfiguração da natureza pela história, a que ele chama de Espírito. Marx, leitor e crítico, afirmava a indissociabilidade entre consciência e matéria no mundo histórico, produzido, por sua vez, pelo trabalho humano a partir da natureza. E há ainda Heidegger, para quem mundo é o campo de sentido compreendido pela existência humana. Como se pode ver, em nenhuma dessas concepções mundo e planeta são sinônimos.
Seria redundante retomar cada um desses autores para saber o que disseram a respeito de animais, plantas e outros; como se pode inferir a partir do seu entendimento de mundo, este é eminentemente humano — isto é, embora as concepções divirjam entre si, situam-se no mesmo terreno. Quando falamos, portanto, em fim do mundo nessa ou nessas cosmologias, estamos falando do fim do mundo humano. Nesse sentido, a catástrofe ambiental estaria sempre relacionada à possibilidade da manutenção da espécie. Mas ainda não é tão simples. Poucas vezes a humanidade é ou foi considerada a totalidade dos entes designados como Homo sapiens. Variações de raça, gênero, classe, a separação entre selvagens e civilizados e outras cindiram a espécie, determinando quem é mais ou menos humano. Essas diferenças fazem e fizeram muita diferença. Se no conceito moderno de mundo cabe exclusivamente a humanidade, o conjunto humanidade é menor que o de espécie.
Ailton Krenak usa a expressão “a humanidade que pensamos ser” para dar conta de certa noção de existência e modo de vida muito arraigados em nosso imaginário. O antropoceno seria a marca dessa humanidade que se crê fixa, que crê a Terra como pronta de uma vez por todas e o mundo como sendo para o Homem ou dele. É só de dentro da estória solipsista do mundo enquanto clube humano que podemos pensar que a catástrofe é um ato da espécie que ela sozinha pode mitigar.
Para Krenak, mundo, ou melhor, mundos são o resultado de um sistema de relações resolutamente metamorfo. A separação entre humanidade e natureza não faz sentido; ou seja, a separação entre mundo e natureza tampouco o faz. E tudo não só é passível de se tornar outra coisa mas também está sempre se tornando outra coisa. Essa é a memória ancestral dos povos:
As diferentes narrativas indígenas sobre a origem da vida e nossa transformação aqui na Terra são memórias de quando éramos, por exemplo, peixes. Porque tem gente que era peixe, tem gente que era árvore antes de se imaginar humano. Todos nós já fomos alguma outra coisa antes de sermos pessoas. […] Os ameríndios e todos os povos que têm memória ancestral carregam lembranças de antes de serem configurados como humanos. Quando os povos originários se referem a um povo como “uma nação que fica de pé”, estão fazendo uma analogia com árvores e florestas. Pensando as florestas como entidades, vastos organismos inteligentes. Nesses momentos, os genes que compartilhamos com as árvores falam conosco e podemos sentir a grandeza das florestas do planeta (trecho de A vida não é útil, 2020).
Essas estórias têm o poder, nos dirá o autor em Antes, o mundo não existia (1992) , de “criar o mundo de novo, limpar o mundo”. Se é assim, é porque elas são capazes de ativar o parentesco que há não mais entre a humanidade que pensamos ser e “os outros” separados por abismos, mas sim entre povos que não cessam de diferir e se encontrar. Vistos daqui, os conceitos filosóficos de mundo do primeiro parágrafo formam um conjunto mais homogêneo do que se poderia suspeitar. E — não nos enganemos — eles são etnoespecíficos: mencionei apenas autores alemães.
Do que se fala quando se fala em fim do mundo, portanto? Essa não é uma pergunta original, mas segue basal. Trata-se da explosão do planeta até que vire poeira? Do fim absoluto das condições materiais que tornam possível a vida humana, a extinção do Homo sapiens? Da transformação dessas condições materiais, de modo que talvez um novo paradigma de vida surja? Da extinção de certos povos humanos? De povos extra-humanos? Do fim das condições que tornam possível o modo de vida da humanidade que pensamos ser? Não é uma questão nada simples; no entanto, processos que concorrem para cada uma das possibilidades acima estão atualmente em curso. Talvez precisemos de mais questões para nos orientarmos, como, por exemplo: o que importa para nós (e quem forma o conjunto “nós”)? O que importa para outros povos, humanos e extra-humanos? Como sabê-lo?
Recorramos a um mito fundador de uma das versões do mundo habitado pela humanidade que pensamos ser, aquele constante do capítulo 3 do Gênesis, quando Adão e Eva comem do fruto da árvore da sabedoria, conhecem bem e mal e se tornam mortais. Deus então amaldiçoa a serpente, subordina a mulher ao homem e conclui, no versículo 19: “No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado”. Sabemos como esse mito nutriu, no Ocidente, concepções de mundo positivamente ligadas ao trabalho. Mas Antonio Bispo dos Santos vê nessa mesma passagem um ato de terror cometido por Deus: a terra é amaldiçoada ao mesmo tempo que Adão e todos os descendentes, não importa o que fizerem. Nunca mais podendo comer o que a terra dá naturalmente, essa humanidade é eternamente separada da terra e danada ao trabalho. Daí surge a cosmofobia, “doença psíquica”. O embate criado entre homem e terra é, para Bispo, o disparador do desastre ambiental: com pavor do cosmos maldito, o homem se fecha em um mundo-cidadela onde a assim chamada natureza deve permanecer de fora. O trabalho, entendido como uma operação exercida sobre ela por um alienígena, é domínio, domesticação, objetificação.
Se encontramos hoje a expressão “guerra de mundos” sendo usada para se referir à catástrofe, devemos entendê-la como uma guerra pelo sentido do mundo, dos mundos. E que não se pense que esse é um problema abstrato, pois trata-se de como e com quem mundificar — herdar, recriar, se desfazer. De tomar partido de alguns modos de mundificação e ser contra outros. Isso envolve viver e morrer, literalmente viver e morrer como vemos hoje diante da sexta grande extinção, do ataque a povos indígenas e de tantas misérias que atingem grupamentos humanos e extra-humanos assimetricamente.
Alguns mundos estão definitivamente mais ameaçados que outros; a desflorestação, os processos acelerados de extinção e a diminuição de populações nos dizem a mesma coisa. Toda a relação cosmofóbica da humanidade que pensamos ser com a natureza, o planeta e seus outros habitantes dá testemunho de que a manutenção da concepção moderna de mundo será fatal para a maioria dos habitantes do planeta. Esse é o enorme problema de nossa época. De nossas e de muitas, muitas mais outras vidas.
O título deste artigo vem de Moon rock, canção de Dory Previn de 1973. A artista explicou que, em meio à exaltação dos astronautas, ela não conseguia parar de pensar sobre como a Lua se sentia, com pedras sendo levadas dela. Na letra, Previn começa lembrando o mito de que a pedra teria sido a primeira arma, mas especula que também pode ter sido o primeiro presente, criando uma ambiguidade que diz respeito a duas distintas concepções de mundo: “uma inimiga ou amiga/ O modo como o mundo começa/ é o modo pelo qual ele termina”. Isto é, o modo pelo qual concebemos um mundo, como o cultivamos, com quem e em quais condições, com quais afetos, é um dos fatores que vai determinar como tal mundo acaba, mesmo que seja pelas mãos de outrem. No momento do fim, é-se povo, comunidade ou, por exemplo, horda zumbi? Não podemos esquecer também das necessárias habilidades de rexistência. Nosso mundo é fundado sob o signo do dom ou da usurpação? Previn passa então à cena da chegada à Lua, “uma anfitriã muito graciosa de um convidado mal-agradecido” — o astronauta agradeceu os amigos em Houston, a família, os patrocinadores, a humanidade, menos a Lua. Ela então se pergunta, e eu a cito, finalizando:
Será que houve algum antigo astronauta
que pousou nesta Terra?
Será que ele agradeceu este belo planeta azul
Será que ele a fez saber o seu valor?
E será que algum antigo embrião
viu o que o astronauta fez?
Porque a maneira como você trata a senhora idosa
é a lição, a lição,
a lição que você ensina à criança
E será que aquele antigo astronauta
pouco antes da decolagem
roubou um souvenir como arma?
Ou será que ele recebeu, recebeu,
aceitou-o como um presente?