Era adolescente e caminhava por uma das ruas que atravessam o bairro do Leblon, Zona Sul do Rio, quando passei por uma loja de relógios antigos, daqueles de pêndulo. Fascinada, entrei e me pus a observá-los. Escolhi o que me pareceu mais bonito, empenhada em uma compra imaginária. O vendedor, um senhor de cabelos brancos, dorso curvado pelo tempo, contestou, convicto: “Esse não é o mais bonito”, e apontou para outro relógio. “Ouça o som deste. É o mais bonito.” Deu corda em vários deles e os fez soar.
Até então, nunca havia pensado em escolher um relógio pelo som que produz. Isso me parecia surpreendente, sendo eu um músico. A tecnologia digital silenciou os relógios. Não ouvimos mais o tic-tac da engrenagem ou o som remoto de um cuco. O visor dos relógios eletrônicos apenas pulsa. Em silêncio. Vemos um ritmo.
Repouso por um momento o mouse e, no monitor, o cursor começa a pulsar. Em silêncio. Vejo um ritmo.
Um dos sentidos do silêncio, talvez o mais difundido, é o de uma dimensão (espaço/tempo) na qual buscamos nos libertar dos condicionamentos que a cultura nos impõe. Livres dos hábitos, podemos, por exemplo, apreciar um relógio por sua sonoridade e não só pela precisão ou design. Ver um som.
Ouvir uma imagem. Incomum sinestesia.
Dimensão cultuada pelos poetas, visitando-a, “crenças e escolas em suspenso”, Walt Whitman compôs a Canção de si mesmo. Inebriando-se de sons, perfumes, em comunhão estreita com tudo o que existe no universo, para o bem e para o mal, o poeta se solta para sentir o enigma dos enigmas: aquilo a que chamamos ser. Silêncio: despir-se para encontrar-se com o eu verdadeiro que celebra a si mesmo, sondando o insondável. “Marca a hora o relógio; mas o que marca a eternidade?”, canta o poeta.
A noção de silêncio mudaria por completo quando o músico norte-americano John Cage se dispôs a experimentá-lo, encerrando-se em uma câmara anecoica, um ambiente especialmente projetado para absorver os sons, tornando-os inaudíveis. Cage se surpreendeu ao ouvir dois sons: um grave e um agudo. O engenheiro que o auxiliava explicou-lhe, então, que o agudo era o de seu sistema nervoso e o grave, o da circulação sanguínea. Cage concluiu que não existe silêncio. Há sempre sons. Basta ter disposição para ouvi-los.
O silêncio deixa de ser entendido como ausência de sons para se tornar os sons do ambiente. Cage chama estes de sons de silêncio, porque não fazem parte de uma intenção musical. Fora do isolamento da câmara anecoica, em contato com o mundo, percebemos os sons em atividade: graves ou agudos, com um timbre particular, uma intensidade, uma duração.
Cage afirma ser o silêncio a experiência sonora que lhe é mais prazerosa, mesmo se comparada à música. O mais sábio a fazer, aconselha, é abrir imediatamente os ouvidos e escutar um som antes que o pensamento consiga transformá-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico.
E se surpreende, ao ler os Diários de Thoreau, com o modo como o filósofo norte-americano explorou a paisagem sonora de Concord, sua cidade natal, observando cada som, musical ou não, como o faria um compositor contemporâneo.
A conceituação de silêncio é formalizada por Cage na peça 4’33”, obra emblemática da música contemporânea ocidental. Uma única palavra compõe a partitura: Tacet. As indicações de duração dos três movimentos que organizam a peça (30”; 2’23”;1’40”) revelam que não há intenção de controlar os sons; apenas de propor um recorte do tempo que nos coloca em contato com os sons do ambiente.
O silêncio cageano é, assim, uma experiência do tempo. Não o tempo do relógio que marca as horas, mas o do instante que nos revela a imprevisibilidade do acontecer e a impermanência de tudo. “Viver acontece a cada instante e esse instante está sempre mudando”. Experimentá-lo requer um despojamento, uma abertura total para o mundo.
Vera Terra é pianista e compositora, e estudiosa da obra de John Cage. Integrou o concerto realizado pelo compositor no Rio, em 1985. É autora do livro Acaso e aleatório na música: um estudo da indeterminação nas poéticas de Cage e Boulez (SP: EDUC/FAPESP, 2000) e de artigos sobre música e arte contemporânea. Foi co-curadora da exposição Begin anywhere: um século de John Cage, realizada em maio de 2012 no MAM-RJ.