Fotos: Ana Pigosso | Galeria Marília Razuk (SP)
#43MiragemArteArtes Visuais

As paisagens de Maria Andrade

Desde os anos 1990, Maria Andrade participa de exposições e circula pelo circuito das artes. Já foi professora, ilustradora, designer e musicista, além de coordenadora educativa na Oficina de Esculturas em Metal, no MAM-SP. Porém, faz 12 anos que esse percurso de muitas voltas achou um rumo preciso: “eu descobri que tinha que mergulhar nesse caminho com tudo, que era isso que eu queria. Porque até então eu fazia mil coisas… e aí eu falei: ‘é isso, eu sou pintora’.”.  

Na época, Maria conta que estava passando por um momento de mudanças pessoais. Atravessava um divórcio e vivia um momento de reencontro consigo mesma. Foi somente aos 42 anos que decidiu mergulhar na pintura. “Eu pintava sem parar, talvez correndo atrás do tempo”, comenta. Ela relata com entusiasmo o encontro com a tela e as tintas, como um momento revelador, de ter certeza de finalmente ter descoberto algo que buscava há tempos.

Desde então, Maria pinta paisagens. A história de sua família – seu pai viveu exilado na Escócia durante os anos da Ditadura Militar brasileira – e a sua vida pessoal contribuem para o imaginário que habita suas pinturas. “Eu gosto muito de paisagem. Acho que eu vi, ao longo da minha vida, em todas as viagens, muitas paisagens. Na minha vida pessoal, eu tenho as paisagens da Escócia, da Inglaterra; tenho as paisagens de Minas Gerais, onde minha mãe comprou uma casa e a gente vai todo ano, e lá é sertão. É uma das paisagens que eu vejo, e eu gosto de estar lá. É um tema de que gosto. Eu acho que tem a ver com o que já vi e com o que eu vivo”.

Suas pinturas, ora sobre madeira, ora sobre tela, são feitas com tinta a óleo. Camadas sobrepostas que aproveitam o tempo longo de secagem da tinta para misturar uma pincelada a outra, pintar por cima, misturar as cores e borrar contornos. Suas paisagens não são paisagens hiper-realistas. Pelo contrário, são paisagens imbuídas de memórias, de sensações, de lembranças e também criadas a partir da imaginação. 

“Durante um tempo, pintei muito sobre madeira. Eu gostava porque ela não afundava como a tela, dava para passar a espátula e dava para eu mudar o formato também, deixar de ser quadrado, retângulo. Então poderia fazer formas arredondadas, algo que eu achei legal por um tempo. Não tenho feito mais. Agora eu parti para a tela de novo”, conta. “Eu pinto a óleo, porque ele tem essa coisa de demorar para secar. Então, no dia seguinte, o trabalho ainda está molhado, ainda dá para mexer, misturar, uma tinta ir na outra e fazer outra cor. Eu gosto. Eu não conseguiria pintar com acrílica, a não ser que fosse outro tipo de pintura. Para o que eu faço, não dá. Eu acho que é também o que caracteriza o meu jeito de pintar”.

O jeito de Maria pintar é rápido e vigoroso. As pinceladas dançam pela tela, esbarrando e entrando umas nas outra, algumas vezes começando o contato com o suporte carregadas de matéria e terminando mais ralas, outras acrescentando camadas de cores, criando áreas mais densas de tinta. Ela pinta com ímpeto e confessa que é capaz de resolver uma pintura em uma hora. Claro, pode ser preciso voltar na obra depois, mas o que ela ressalta, na nossa conversa, é que, quando entra no ateliê, de fato mergulha no que está fazendo e produz sem parar. 

Sua exposição mais recente, Sem sombra de dúvida, apresentada na galeria Marília Razuk, entre agosto e setembro deste ano, reuniu cerca de 30 pinturas inéditas, todas produzidas nos seis meses anteriores à inauguração. Entre as paisagens apresentadas estavam composições com diferentes cores, matas mais tropicais, outras cenas mais áridas, algumas com cores mais vibrantes, outras com cenários mais sóbrios e alguns quadros mais abstratos. Na verdade, mesmo quando Maria pinta árvores, montanhas, coqueiros, palmeiras, folhas, cachoeiras, pedras, arbustos – e podemos perceber essas formas na tela – sua pintura tende a certa abstração. É possível reconhecer a referência à paisagem natural, mas se soma à composição um jogo de linhas e campos de cor que embaralham o olhar e lhe conferem sua característica própria. 

Conforme escreve o crítico de arte Rodrigo Naves, no texto Útil paisagem?, que acompanha a exposição, as palmeiras de Maria “são cercadas por uma vegetação quase cerrada, e o verde escuro dominante não remete a um solo degradado nem à falta de água. As palmeiras sobressaem por uma verticalidade paradoxal: os troncos são finos para o verdor e a força da folhagem e seus coquinhos. Sobretudo os troncos não têm contorno, nem o claro-escuro que sugere a impressão de um volume roliço, e a irregularidade das pinceladas acentua o pouco diâmetro”. Em sua pintura, não há os clássicos claro e escuro, luz e sombra da pintura tradicional. Suas pinceladas conferem contorno, mas não volume. Há uma certa planaridade dos elementos na tela que se soma a uma luz que é quase sempre difusa. 

Atualmente, uma das coisas pela qual a artista está interessada é a produção de tapeçarias marroquinas, influência que apareceu em algumas das pinturas de Sem sombra de dúvida. “Eu me encantei pelos desenhos dos tapetes marroquinos, que as mulheres das montanhas fazem. Os desenhos são muito loucos. Eu fiquei pensando de onde vinha isso, porque elas estão lá, mais ou menos isoladas, numa montanha do Marrocos, fazendo aquilo, e é muito lindo. Me inspirou, e eu comecei a pesquisar. Obviamente que veio para a minha pintura”, relata. 

Em alguns quadros, as linhas mais geométricas, que cortam, ou se encaixam na paisagem mais orgânica têm origem no diálogo que Maria vem travando com essa pesquisa. Ela conta que, em seus quadros recentes, vem misturando “um pouco de paisagem com tapete”. Para além das formas e cores, a inspiração que essas peças de tapeçaria trazem é a do próprio fazer, algo que é central para a artista quando ela está diante da tela. 

Ela conta que, no início, suas obras nasciam a partir de fotografias e imagens de referência que ela mesma fazia ou buscava na internet. Com o passar do tempo, começou a ser cada vez menos fiel ao que estava vendo e a se entregar mais ao acaso do que surgia no momento, na relação direta com a tela e com os materiais. “Às vezes tem uma coisa bem abstrata também, né? Uma paisagem inventada, do meu imaginário, e que tem a ver com o ato de pintar, de estar naquela viagem da pintura, estar ali com a tela e com as tintas.”

Maria comenta sobre a liberdade infinita que há, hoje em dia, em escolher tudo, desde o tema, os materiais, o tamanho, o formato, algo que nem sempre é fácil. Para ela, o guia principal é a inspiração. “É o que te leva a fazer aquela pintura, escolher aquele tema naquele momento”. Além das paisagens que carrega consigo, que formam seu imaginário, e das influências da produção de tapetes marroquinos, Maria também tem trabalhado com impressos antigos, como por exemplo, selos. Alguns elementos desses papeis aparecem em suas telas recentes. Em alguns momentos, no entanto, a inspiração nasce simplesmente do desejo de pintar com certas cores: “As cores me inspiram também. Às vezes eu começo uma pintura sem saber bem o que vai ser, mas porque eu quero usar determinadas cores”, completa. 

Sobre se dedicar a um gênero que ocupa um lugar muito específico, notório e tradicional no campo das artes, Maria rebate que não vê nenhum problema nisso. “Em algum momento me questionei: será que é sem graça? Dá para fazer tantas outras coisas. Mas pensei: é o que quero fazer! O que vão pensar não é importante. É o meu jeito, é o que eu quero. E essa autenticidade do artista, independente do mercado, se vão gostar ou não, é fundamental. É um requisito básico”, enfatiza. “A arte é isso, você faz o que você quiser, essa liberdade infinita, que até angustia de tantas possibilidades. Mas o que dá vontade, o que inspira… é daí que tem que vir, e eu deixo vir”, completa a artista que, para o próximo ano, planeja fazer uma residência no Marrocos.