“Faze o que quiseres”, eis o dístico sobre a porta da Abadia de Thelema, construída por Gargântua, na célebre obra de Rabelais. Única do palácio, no entanto, tal regra apresentava um terrível contraponto: “desde que agrade ao príncipe”. A galante vida da corte francesa demandava lá seus divertimentos espetaculares, para dar conta do enfado do dia a dia, e, a partir de um circuito fechado, acabou engolindo a si mesma; o lazer, a diversão e as extravagâncias impuseram novos sacrifícios, novos deveres, novos tédios.
Estudar a história francesa a partir do signo da melancolia aponta a caminhos dos mais diversos e, na vereda literária, a uma inevitável e desejável solidão. De Ronsard aos modernos, não faltam relatos de personagens solitários, a caminhar pelas ruas de Paris. Não por acaso a Cidade Luz ter inspirado uma das figuras literárias mais problemáticas, e também estudadas, que é a do flâneur. O flâneur do século XIX, o flâneur de Baudelaire, e até mesmo o de alguns séculos antes, é em essência um ser solitário. Caminhar pelas ruas de Paris tornou-se, em especial, a partir da apreciação crítica de Walter Benjamin, um emblema da experiência urbana moderna.
Quando chegamos em Proust, que creio ser o epítome que lacra a literatura francesa em dois momentos distintos de sua evolução, a solidão sofre um importante golpe que alteraria a experiência daquele que vê-se sozinho. Proust observa que desde Louis XIV, ou seja, desde a segunda metade do século XVII, a sociedade francesa, representada pela metrópole parisiense e seus arredores, passou por profundas transformações. A ritualística palaciana e aristocrática já não mais agradava ao príncipe. Todo o barroco da majestade do soberano, a cortesia dos cavalheiros, a beleza das mademoiselles, seus cavalos e suas carruagens, o alto espírito da realeza e seus cultos e discursos, tudo transformara-se em tédio profundo, antecipando e prevendo a repetição cotidiana da metrópole e de seus funcionamentos.
Proust, seja na ficção ensaística de Contre Sainte-Beuve ou pela narração de sua Recherche, estrutura a solidão como um movimento de escape das opressões tirânicas do hábito e observa o espaço do sujeito solitário fragmentando-se em cidades-modelo projetadas para destruir um dos últimos refúgios das liberdades urbanas. As estreitas ruas medievais de Paris e seus cul-de-sacs foram arrasados em detrimento de enormes bulevares, em uma espécie de coerção a partir do cenário urbano. O flâneur, por assim dizer, não deixou de existir, mas viu seu terreno completamente minado de uma coletividade, da qual sempre pretendeu fugir. Tal qual o albatroz de Baudelaire, que preso nas tábuas do convés, debate-se em um espaço que não é o seu. Como se o calçamento de Paris, surgido em 1184, de repente fizesse surgir uma armadilha terrível. A armadilha do bulevar, com a família a passear e os militares a observarem.
A solidão, para Proust, passa pela resolução de uma equação para lá de complicada. Nascido ainda sob os ecos sociais da supressão da Comuna de Paris, com o declínio da aristocracia e a insurgência da classe média durante a Terceira República, Proust construiu sua biografia em torno deste contexto em particular. Com livre acesso aos salões da alta burguesia, o autor era um fino observador da psicologia humana em pleno fin de siècle. O mundo pedia uma nova apreciação, que respondesse a novas ânsias de um novo mundo e, mais, de um novo fazer literário, por um distanciamento que condicionava uma nova, e problemática, solidão.
Nessa distância, também temporal, que reside o grande infortúnio da solidão de Proust que, para resolvê-la, precisa voltar para si mesmo e para suas memórias e reconstruir não apenas uma gênese do universo ficcional (e real, quando a nós espelhada) mas uma gênese do romance e da literatura – gêneses essas vinculadas por dois extremos, o do desejo e o da tristeza, mas que se tocam no ponto comum da solidão.