Detalhe de “Bandeiras e mastros”, de Alfredo Volpi (1896-1988)
Cultura

Uma festa de muitos Brasis

Junho no Brasil é sinônimo de Dominguinhos e Luiz Gonzaga. Sinônimo de Alfredo Volpi. É a Festa do Interior que Gal cantava com tanto fervor. Se por um lado fevereiro é o mês que comporta as festividades que mais carregam o suprassumo do jeitão brasileiro (pelo menos aquele mais conhecido aos olhos estrangeiros), junho não fica muito atrás em termos de brasilidades e, de quebra, sempre traz consigo um punhadão especial de tradições que gritam ancestralidade através dos acordes, tecidos e sabores de suas celebrações. 

Obra de Nerival Rodrigues

Estamos falando da fogueira, do quentão, do correio elegante, da paçoca, dos chapéus de palha, da quadrilha, da maçã do amor, de tudo aquilo que garante um mês animado “igual que nem fole de acordeão/ tipo assim num baião do Gonzaga”, como diz Chico Buarque no seu álbum de 2011.

As festas juninas são como grandes demonstrações de alguns de nossos costumes típicos, uma curadoria detalhada e extensa que lota as paredes com quadros que enaltecem a possibilidade de se universalizar aquilo que é regional. Nada é mais Brasil do que isso. E, de maneira alguma, estamos falando de uma exposição que pretende tão somente relembrar: muito embora beba de pratarias de outras épocas, é, na realidade, a celebração de uma história que nunca deixou de acontecer e que, assim, se renova ano a ano. 

©Agência Brasil/Marcello Casal Jr

Essas comemorações vêm com temporada aberta para muitos dias de junho — todos eles sujeitos a lotações em qualquer canto do país. 

Com o arraiá nos chamando para dançar, é o momento de celebrar São João. A festividade se enraizou profundamente na cultura e se tornou uma expressão marcante da identidade brasileira. As raízes dessa festividade remonta a tempos distantes, quando as comunidades agrárias celebravam o solstício de verão, agradecendo às divindades pela fartura das colheitas. Com a chegada dos colonizadores portugueses ao Brasil, a celebração se mesclou com elementos da tradição católica, sendo dedicada a São João Batista, o santo padroeiro do Nordeste brasileiro. 

É Brasil sem tirar nem pôr — com um pé no solo do Nordeste, outro nas páginas da Bíblia e um terceiro pé (o que só parece ser possível por se tratar de Brasil) mesclando as superfícies de muitos outros estados brasileiros a tudo isso.

João Batista, quem é esse?

Depois do dia do “santo casamenteiro”, Santo Antônio — celebrado um pouco antes, no dia 13 —, São João dá continuidade às celebrações do mês. Ele, portanto, é o segundo religioso homenageado nas festas juninas, sendo seguido por São Pedro e São Paulo. Mas João, claro, é o mais lembrado, apesar de ser um daqueles casos em que o nome é mais famoso que a história por trás.

Nem todo mundo sabe, mas João Batista é o homem que, de acordo com a Bíblia, batizou Jesus Cristo. Suas mães, Maria e Isabel, seriam primas, o que quer dizer que, veja só, São João era parente de Cristo. Sendo seis meses mais velho do que o Messias, acompanhou de perto o desenvolvimento do primo de segundo grau. Com a boa relação entre eles, pavimentou o caminho do Messias, tornando-se assim o profeta que anunciou Jesus Cristo como o Cordeiro de Deus.

Toda a sua pregação era sobre o fato de que o Messias estava para chegar e, quando isso enfim aconteceu, São João diz que o tempo acabou. Mas sua vocação como pregador, que garantiu sua eternidade, também fez com que o final de sua vida fosse trágico: pouco depois de ser preso por Herodes Antipas, um poderoso administrador da região que via problemas no que o profeta pregava, João foi decapitado. João Batista, que viria a se tornar São João, morreu no dia 29 de agosto do ano 29. Essa data, aliás, nos leva a outro fato interessante, algo que denota a enorme relevância do santo: São João é um dos poucos santos venerados na Igreja Católica que possuem duas datas litúrgicas. Tanto a sua data de nascimento (24 de junho) quanto a de morte são eventos celebrativos, o que acontece porque São João é conhecido como o grande “anunciador”. 

“Salomé com a cabeça de João Batista”, de Caravaggio (1571-1610)

No imaginário popular e religioso, muitos símbolos e capacidades são atribuídos a santos. São Jorge é o santo guerreiro, Santo Antônio é o santo casamenteiro. Mas e quanto ao seu, ao meu e ao nosso São João? Além de ser associado com a imagem do cordeiro, tem uma ligação forte com a fogueira. Por ter testemunhado antes de todos a luz imensa que provinha de Jesus, João Batista se associa à fogueira como algo que simboliza essa iluminação. É por isso que não há festa junina sem fogueira. 

Uma festa e muitos Brasis

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a partir de 1500, trouxeram, além das tradições católicas, as festividades religiosas. Os portugueses tinham as chamadas festas joaninas. No Brasil, fomos secularizando e transformamos em festa junina, no mês de junho. Há grandes influências da cultura indígena nos alimentos à base de milho, mas se conserva a tradição portuguesa e europeia das quadrilhas. A força de São João, sobretudo na região Nordeste do Brasil, tem ligação com a colonização do Brasil. Lá houve um enraizamento da cultura portuguesa, com São João sendo forte principalmente no interior com o catolicismo popular na vida do sertanejo.

“Bandeiras e mastros”, de Alfredo Volpi (1896-1988)

As festas juninas assumem diferentes formas por todo o território brasileiro, refletindo a diversidade cultural e regional do país. No Nordeste, a tradição junina se torna uma verdadeira festa de cores, com quadrilhas animadas, bandeirinhas coloridas e fogueiras que iluminam a noite. O forró é o ritmo predominante, embalando as danças e levando alegria aos corações dos festeiros. No Sudeste, a influência caipira e sertaneja dá o tom às festas juninas, com danças de roda como a catira e o cururu, e músicas que trazem a melodia da viola e da sanfona. O aroma de quitutes como o caldo de mandioca e o arroz-doce paira no ar, enquanto as pessoas se deixam envolver pelo clima acolhedor e festivo. 

Já no Norte, a Amazônia dá um toque especial às festividades, com ritmos regionais como o carimbó e o boi-bumbá. As tradições indígenas e ribeirinhas se entrelaçam com as manifestações juninas, criando um mosaico cultural único e cativante. O tacacá e o vatapá são sabores que marcam essa comemoração na região. No Centro-Oeste, a cultura pantaneira se faz presente, trazendo danças como o siriri e o cururu, que resgatam as tradições ancestrais. Rodeios, festas de peão e pratos típicos como o arroz carreteiro e a pamonha completam o cenário festivo dessa região.

A festa junina também desperta o interesse de estrangeiros que buscam vivenciar a diversidade cultural brasileira. Através das festividades, os estrangeiros têm a oportunidade de conhecer uma faceta menos explorada da cultura brasileira, se apaixonando pelos detalhes e pela riqueza cultural que permeiam cada celebração. Enquanto o carnaval é reconhecido internacionalmente como uma das maiores festas do mundo, as festas juninas ainda são pouco conhecidas além das fronteiras do país. 

Mas aí quem perde é o resto do mundo. 

Embate saudável entre tradição e tecnologia

Em um mundo cada vez mais acelerado e digitalizado, as festas juninas se mantêm como faróis de resistência à loucura do cotidiano. “Resistir” não necessariamente pela via de ir contra, mas resistir no sentido de emanar uma espécie de autenticidade destemida. Uma festa junina é uma festa junina, com todas as letras, sem medo de acontecer num mundo que parece pregar outros evangelhos culturais. 

É bem verdade: as barracas, as bandeirinhas, os fogos de artifício e mais praticamente tudo que há numa festa junina é muito “instagramável”. Num único evento, caso houvesse esse tipo de levantamento, a quantidade de postagens chegariam a números impressionantes. Mas isso não quer dizer que, em sua essência, essas comemorações não celebrem a simplicidade, evocando um espírito intrinsecamente anti-tecnologia e pró-calmaria.    

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião

Ainda que aconteçam muitas vezes em centros movimentados de cidades grandes, como é o caso de São Paulo, elas nos convidam a uma pausa (ao menos uma ideia de pausa), a uma reconexão com nossas tradições (ao menos uma ideia de reconexão), com nossa essência como povo. As festividades juninas são um elo com o passado, uma celebração da identidade brasileira, repleta de cores, sabores e melodias que nos conectam uns aos outros e à nossa história. No São João, as tradições se perpetuam, e a cultura brasileira se fortalece. É um momento de reafirmar nossa identidade, valorizando as raízes que nos tornam únicos. As festas juninas seguem sendo mais tradicionais do que nunca, preservando a magia e a autenticidade em um mundo que busca constantemente a modernidade.

Na medida em que o mundo digital avança num ritmo frenético capaz de assustar qualquer um, as festas juninas permanecem como uma pepita guardada em nossos corações, batendo de frente com a voracidade da vida contemporânea. 

Elas nos lembram da importância de celebrar a vida, de valorizar nossas tradições e de nos conectar com o que realmente importa: a essência da nossa cultura e a conexão humana.

Que Gal Costa, Dominguinhos e Luiz Gonzaga não deixem de se esbarrar.